terça-feira, dezembro 15, 2009

paciência

É verdade que eu imaginava a vista mais bela.
É verdade que os degraus foram um desafio para meu fôlego.
É verdade que o plano era apreciar a vista e descer em seguida.
Mas acontece que eu não vou descer, sabe?
Vou ficar morando por aqui, comendo vento, bebendo luz.
É verdade que minhas verdades eram todas mentiras. Paciência...





Marina nunca foi mulher de medo nem de poucas razões. Era cheia de verdades, de certezas. Gostava de muitas explicações e de doce de abóbora. Gostava de brigar, de brigar com muitos argumentos, fazendo das palavras verdadeiras armas, punhais afiados, coisas assim. Marina, menina de muitas encrencas na rua com as outras crianças, virou Marina, mulher de confusões românticas e inconformismos com atendentes de telemarketing. Era a Marina"pavio curto" dos íntimos.
Tolerância não era com Marina. Em definitivo, ela desconhecia o significado disso. Cansada do mundo, cheia da televisão, das notícias, dos bancos com suas filas, das lojas e dos produtos em liquidação, Marina  quis olhar de cima a vida para ter a certeza de que tudo era mesmo tão maçante: "Droga. Errei o caminho. Errei a roupa. Errei a receita do bolo".
Marina subiu uma escada alta, mentalizando que "paciência é a ciência da paz" e decidiu não mais descer. Reza a lenda que Marina construiu sua vida do alto daquela escada. Casou com um paraquedista que desabou por ali, teve três filhos - Flora, Bernardo e Bento -, esqueceu das brigas e até do vício em doce de abóbora.
Não era o Brejo da Cruz onde há quem diga que se vivia de luz, nem nada do gênero. Era só uma escada alta, cuja construção mobilizou três quintos dos homens que construíram Brasília. O fato é que Marina se sentia completamente livre das verdades e já comia vento como ninguém, tinha deliciosas receitas cujo ingrediente principal era o vento mesmo e vivia bem feliz com a tal ciência da paz.

terça-feira, dezembro 08, 2009

e tantos homônimos

Em uma tarde de feriado é bem possível perceber que o mundo está repleto de homônimos. Iguais no nome e diferentes em todo o resto. Às vezes, apenas o som é o mesmo, noutras vezes inclusive a grafia é idêntica e, naturalmente, pode isto causar muita confusão. Uma "casa", simples moradia, pode virar um "Casa com ele amanhã e vai morar no Chile! Eu dou todo o apoio". Bem assim, as pessoas podem ter o mesmo nome e, no entanto, não guardarem entre si qualquer semelhança. Foi esta última espécie de homônimo a que me marcou.
Pensando a este respeito, também me ocorreu que os fatos, os esta tarde vividos, poderiam ter muitos homônimos se fossem eles transformados, cada um, em apenas uma palavra.
O seu abraço quente, sob o sol escaldante, poderia ser chamado aconchego. Sua conversa solta, ganhando o vento e a rua, descendo a janela, dançando no ar, poderia ter o nome liberdade. Os mapas e fotos que me mostrastes, de uma época que não foi presenciada por qualquer pessoa a este tempo vivente, enquanto ouvíamos seus estranhos rocks e alguma música clássica, poderiam ser denominados pedaços de novidade ou fragmentos de incompreensão. Sua surpresa ao descobrir uma pequeníssima casa de um inseto qualquer, feita de barro, seu modo de desmanchá-la nos dedos e de atribuir ao desconhecido animal o título de engenheiro, eu chamaria encantamento. E sua barba me arranhando o rosto e pescoço, em uma despedida apressada não teria como homônimo a aspereza, jamais, mas a delicadeza de uma saudade que se mata aos poucos.
Este é o mundo dos homônimos, dos vocábulos idênticos. Um mundo que me faz ter a certeza de que ninguém que tenha teu nome conseguiria a ti se igualar.


quinta-feira, dezembro 03, 2009

pois ia

Parecia uma heresia
falar assim da poesia
que outrora o coração me ocupou
Tratar com desdém
a poesia com quem
gastei tardes, palavras e amor.

À poesia dar adeus
sempre foi coisa que aos meus
era estranha ao meu proceder
Quem bem me conhecia
já sabia que se eu ia
eu voltava e esperava, à mercê.

Partir me era um tanto infazível
um tanto indizível
e outros neologismos
outros surrealismos
ou um absurdo qualquer
absurdo de quem quer
com puro pó construir
um lugar onde ir,
um recanto
mas nem tanto
com poesia se constrói
e é assim que sói,
que costuma acontecer
de a poesia correr
e já, ao longe, acenar
E dizer que já não calha
que não há razão que valha
que não adianta esperar
Que irá com outro norte
procurar tentar a sorte
aventurar um novo lar.

Eis que a poesia
era pó que ia, pois
e ia, sim, é certo. Ia
Tanto ia que se foi.



Com gratidão, a quem soube separar, aos meus olhos, as sílabas da palavra "poesia".

terça-feira, dezembro 01, 2009

em resposta, o escritor

Não sei escrever cartas. Tenho dificuldade em me dirigir a alguém em específico. Meu dom se restringe a falar a um grupo de pessoas indeterminado, cujas faces não tenho eu de encarar, cujos olhares não preciso conhecer. Não dedique, pois, muito de sua atenção a esta correspondência, que, possivelmente, parecer-lhe-á mal feita.
Causaram-me espanto suas palavras, agrestes, embora vestidas em um traje de eufemismo. Apesar de duras, parecem-me verdadeiramente transparentes, quero dizer, enxergo nelas bastante sinceridade. Você toda me pareceu um poço de sinceridade e não é isto um dos galanteios baratos que tanto vê no livro que chama de "grande monstro de papel branco", a menos, é claro, que deseje figurar naquelas páginas. Da minha parte, objeção não haveria.
Pelas críticas, as construtivas e aquelas em que desponta um sinal de desprezo - e que nem por isso deixam de ser bem didáticas -, agradeço. Não pretendo observá-las, mesmo porque todo o público que remanesce, ainda que sem a sua aprovação, é o que me alimenta. Não estou me referindo à satisfação profissional, felicidade, nada disso. Falo de comida à mesa, uísques diários e alguns pequenos luxos que a venda de mim mesmo me proporciona.
Do pouco ou nada que conheço a seu respeito, posso inferir que a essa função alimentar dos "romances autobiográficos em múltiplos contextos" você chamaria prostituição intelectual. Pois bem, quem nunca vendeu um pouco de si?
Por favor, queira não levar a mal minha resposta, não tomá-la por grosseira. Entenda a forma de sobrevivência que para mim erigi como a melhor e não esqueça de comigo colaborar: à sua amiga, avise que, às sextas, pode ela me encontrar, via de regra, desacompanhado, naquele bar à Rua Nova. Imagino que sua ajuda me renderá ao menos mais um capítulo e alguns mimos, merecidos por um bom vendedor da própria vida.


quinta-feira, novembro 26, 2009

uma carta ao escritor

Esse papo já tá qualquer coisa
Você já tá pra lá de Marrakech
(Caetano Veloso)





Quero dizer-lhe que tenho acompanhado suas obras, ainda que esporadicamente. Tenho este último livro seu à minha cabeceira sabe lá Deus o motivo, com o perdão da sinceridade. De início, nas primeiras páginas, pareceu-me bastante interessante. Segui na leitura, tentando desvendar o rumo da história, conhecer os personagens, descobrir sua mensagem. De folha em folha, detinha-me, concentrando-me nas suas palavras, num esforço por buscar um suposto sentido oculto, sentido que quem escreve costuma camuflar.
Gostei das ilustrações e destas páginas absurdamente brancas, ofuscantes, cheirando a livro novo. A formatação é boa, a diagramação é de bom gosto. Formalmente bom, em síntese.
Passando ao conteúdo da obra, acredito que o senhor foi feliz no mote que escolheu. No que se refere aos capítulos, de forma específica, nenhum se compara ao que menciona a tentativa de afogamento do personagem principal que, arrependendo-se, descobriu, às portas da morte, que sabia nadar. Sua narrativa foi fantástica ao ponto de, ao lê-la, haver me sentido afogada no sofá de casa.
Ocorre que, aqui acolá, surgiram novas figuras tão repentinamente que, nem em meio à falta de sentido que é própria de seus escritos, os últimos capítulos se encaixam. Estão eles desconexos, cheios de longos abismos. Nexo é o que falta à obra, que, do meio para o fim, desanda, se me permite dizer.
Vi uma entrevista que o senhor deu ao canal 12 e recordo que mencionou o caráter autobiográfico da sua obra. Sei que sua idéia de “romance autobiográfico em múltiplos contextos” pareceu inovadora à crítica e, segundo ouvi falar, fez o público invadir as lojas em busca de suas obras, querendo seguir-lhe a vida, como um reality show das elites intelectuais. Eu temo por sua intimidade, se é que o senhor ainda a tem, e repugno esses modismos. Diante disso, passei por um tempo de abstinência do seu grande monstro de papel branco, esse seu romance de letras miúdas e muitas páginas.
Aproveito a ocasião para mencionar a opinião de uma grande amiga, seguidora fiel de seu trabalho. Para ela, insistir na autobiografia é contraproducente, melhores seriam aqueles contos policiais de alguns anos atrás. O romance de sua própria vida, com personagens infindáveis, fatigou também essa minha amiga, a qual voltaria a lê-lo se o senhor a permitisse participar da história (pediu-me que eu desse ensejo a um eventual convite).
No mais, faço minhas as palavras do Veloso “esse papo já ta qualquer coisa. Você já tá pra lá de Marrakech”. Ou o senhor inova na vida, ou inova na obra. Sendo um o outro e o outro o um, é chegada a hora de mudar de profissão.

segunda-feira, novembro 23, 2009

ao leo

Leo, ao léu,
olhou pro céu.
Na rua,
encarou a lua nua
e se riu.
Se riu do que viu.

Era a lua um "u".
Cadê o Cruzeiro do Sul?
Será que é pra lá?
Sei lá!
Sou mais a lua, ah...
Mas qual lua cheia!
Leo gosta é dela meia.

O menino enchia o olho de satélite, contemplando o céu. A mãe dizia que era "um aluado! Se pode uma coisa dessas, demorar assim no sereno! Termina doente com essa teimosia de ficar de papo pro ar no meio da rua... Ô, João, manda esse menino entrar!".
Leo, ao léu, nem se importava. Já assim, de pequeno, sabia que a lua minguante era toda matemática. "A tal da para, para, parábola". A lua, imaginava Leo, era uma parábola. "Começa em cima e vai descendo até o... vértice, depois sobe outra vez. O professor disse que a pará... bola era equação de 2º grau". Leo, portanto, não estudaria o assunto agora, de modo que entender a lua em números era coisa para o futuro.
Leo, ao léu como estava, não tinha pressa em saber tanto do mundo. De cara para a lua, lembrava o dizer da avó de que tudo que sobe desce, que as coisas sempre voltam para onde saíram. E não era verdade? Se ele jogava uma bola para cima, ela descia. Uma pedra também. Com a parábola era igual!
Esse Leo, ao léu, de olho para cima e imaginação no infinito, descobrindo segredos que quase nenhum adulto consegue compreender...

terça-feira, novembro 17, 2009

licença poética

Não me recordo, com exatidão, da primeira vez em que ouvi falar em licença poética. Acredito que, à ocasião, comentava-se sobre Chico Buarque, talvez sobre Caetano Veloso, ou mais precisamente sobre uma letra que fosse da autoria de um deles na qual, usando de certa atenção, era possível detectar um erro gramatical.
Gostei da expressão e, após me haver ela chegado aos ouvidos em outras oportunidades, dediquei-me a procurar situações para empregá-la. Dia desses, porém, percebi que, muito embora quando do meu primeiro contato com a idéia de licença poética tenha me parecido seu sentido plenamente intuitivo, a acepção da terminologia já não se me afigurava tão óbvia. Antes se mostrava muito evidente que licença poética era uma espécie de discurso dos literatos: "Dá licença que, em literatura, a gente pode falar o que quiser e como quiser". Podia ser também um tipo de documento concedido pela prefeitura em que se autoriza a liberdade de tudo dizer, ainda que sem obediência a uma forma prévia. De toda sorte, o significado principal estava na cara.
Num dia de praticidade, porém, encarei de frente e com outros olhos a tal licença poética e a tomei como efetiva pausa da poesia, um fim para tudo o quanto houvesse de literário na minha história. Era uma permissão para ir embora, um adeus aos versos, à estesia.
Despedi-me, sem pesar, de muito e decidi que, dali por diante, nada passaria de palavras secas. Evitei entrelinhas e não deixei margem para múltiplas interpretações. Os fatos tornaram-se controláveis, previsíveis e, é verdade, tudo parecia cômodo e bem acomodado. Havia posto as coisas em ordem e não pretendia mudá-las de posição até que a despedida parece despropositada e a poesia faz falta.  A ordem cômoda mostra-se desconfortante e a arrumação, de tão perfeita, finda inútil.
Certamente, necessária será uma nova licença, dessa vez, uma licença dada pela própria poesia, uma permissão à reaproximação. Por ora, não sei como proceder. Peço perdão, portanto, se não me reconcilio depressa com ela. Lamento pelas palavras pobres, pois, por minha vontade, mostraria, já de agora, algo que se pudesse chamar literatura.



segunda-feira, novembro 09, 2009

à porta

Tu não és de pedra, sinto os teus sinais de vida e sei do teu coração, da quentura que há em ti. Sei também que quando falas, arrogante, na desimportância de tudo, queres te referir à beleza de tudo. Afirmando, resolvidamente, ser o mesmo tudo, mais que irrelevante, passado, pensas, contra tua vontade, em um eventual futuro. Quando apontas a covardia de um coração fechado, procuras um meio de destrancá-lo. Se mencionas as páginas rasgadas, sei que, qual criança no chão do quarto, insistes em juntá-las, pois, se tal me ocorre, contigo não há de ser diferente.
Não consigo dizer - e não estou a forjar ignorância - quem fechou a porta para quem, na mão de quem estava a maçaneta. Se o fiz, o pedido pode até ter sido teu. Se ato e decisão foram meus, nada tenho a mencionar além de que é este um novo momento.
Digo-lhe, com convicção, que já não necessitamos da troca de hostilidades. Posso deixar a entrada da casa aberta e aguardar. Posso repetir os velhos discursos, relembrar frases e ouvir as gastas canções. Posso ser só nostalgia até que apareças no vão da porta. Inclusive, podes chegar à porta e aportar por aqui, sem pressa.

quinta-feira, novembro 05, 2009

sobre os imperativos

Quando eu te quiser falar, não me peças o silêncio, não me clames por respeito, não me deites nos ouvidos tua moral. Quando eu te quiser gritar, não me peças paciência, não me lembres da decência, não me feches no meu mal. Quando eu te quiser distante, não demores outro instante, afagando estas mãos que já não te querem perto. Não te finjas de tão certo, de alguém que é só meu, não te pintes de ateu, descrente de minhas ameaças. Honra estas tuas calças, já sei bem que tipo és, não te jogues aos meus pés caso eu esteja noutro mundo. Contigo não haverá assunto e ali não irás entrar, mas quando eu te quiser falar, quando eu te quiser ao lado, nada há que reclamar. Não apontes os pecados ou o que se fez de errado, quando eu te quiser ao lado, quando eu te quiser falar, não te prendas ao passado, agarra-te no que será.



quinta-feira, outubro 29, 2009

de tudo que não se diz

- Não quero terminar a vida assim. Já sinto cheiro de morte nas minhas roupas, cheiro de podre. Certamente vem de você.
- Ora, vamos. Isso não é jeito de falar. Não fica bem tanta grosseria, Ana. Sente-se, sim? Conversaremos como adultos. Acalme-se. Viu as fotos que revelei? Ficaram ótimas as fotos da viagem. Penso que logo faremos outra dessas e...
- Você cheira à morte.
- Ana...
- Morte antiga e já em decomposição avançada, cheia de baratas sarcófagas. Preciso vomitar.

Diálogos incontidos são feitos, em regra, de verdade nua e mal educada. A verdade despida, numa nudez plena, é devassa, ameaçadora à moral e bons costumes. A sociedade a nega.
Por temer a rejeição, fecho a boca ao mastigar e nunca bato à porta da vizinha para mostrar-lhe o juízo que, de fato, faço dela e dizer-lhe que deveria pagar o condomínio. Vivo no co-domínio das classes dominantes que ditam as regras de etiqueta. Vivo no auto-domínio, de pessoa dominada. Daí meu mastigar de boca fechada.
Tivemos uma história de contenção, gentileza, elogios, bom trato. Uma história de "bom-dias", de "você está tão bem hoje" e "durma bem". Urbanidade demais e sinceridade de menos foi nosso erro, termos vivido imersos num mundo de sorrisos corteses, batidas pedindo permissão para entrar e "com licenças" em demasia. Foi a maior falta que cometemos: sermos mais dois no mundo, iguais, em tudo, a todos os educados.
Não sabíamos, mas a educação luta contra nós e não a nosso favor. Estivéssemos eu e você nus, a verdade nua, os fatos teriam sido crus. Houvéssemos tirado a roupa a tempo, entrado nas vidas um do outro sem pedir gentilmente e dito as frases sem escolher criteriosamente as palavras, não seria hoje o cheiro acre, o sabor azedo, o incômodo e assombro póstumos. Não seria o fim triste de uma história comida por vermes.
Falemos sério. Afastemos, pelo menos por ora, a educação cotidiana. A história está podre sim e você, já não preciso nem mesmo falar, cheira à morte.

Aos "correligionários" que entre livros e amigos estão.

segunda-feira, outubro 26, 2009

so, fear

Sophia é um estado de espírito. Não seria nada estranho acordar e se sentir meio sophia o dia inteiro. Não seria também esquisito chegar ao trabalho e todos comentarem: "Que cara mais sophia é essa? Aconteceu alguma coisa?". Nem seria estapafúrdio demais abrir o jornal e ver a manchete: "Médicos persistem na busca pela cura do sophia".
Não importa o sexo, a cor, a idade. Basta ser humano para ser passível. É esta a única condição.



Sophia
Sofria
Não ria
Sentia
que um dia
morria
afogada na pia

Sophia
Sofria
O amor temia
A sorte não via
A vegonha doía
Acanhada Sophia
de tristeza entendia

Sophia
Sofria
Toda noite era fria
A esperança partia
machucando Sophia
Mas Sophia queria
o que só ela sabia

Sophia
Sofria
Mas sua dor lhe dizia
que acharia Sophia
o que só se escondia
Haveria Sophia
de encontrar alegria.

domingo, outubro 18, 2009

refeição

Eram maçãs em fatias
aqueles dias
doces manhãs               
tu eras sol em pedaços
estilhaços.
Iluminada vontade
atrasada vontade, já tarde
de tarde, o mormaço
um abraço, um olhar.
Mais uma noite só tua
escuro na rua
amor a clarear.
Nosso lar, o lagar
lugar do nosso próprio vinho
tu e teu pinho
tocando mais uma canção.
De uva em uva, de grão em grão
nossa casa tão nossa
na vitrola, uma bossa
o amor era o pão.
Se era pão, também era migalha
se a memória não falha
foi assim que findou.
Só migalha restou
do que tanto nos foi refeição.
De uva em uva, de grão em grão
o pedaço de sol virou pão
e de pão à migalha mudou.

terça-feira, outubro 13, 2009

à beira

Se eu pudesse resumir o mundo inteiro num só adjetivo, diria que ele é grande. Coração estreito, peito pequeno é coisa pouca, besteira demais no meio do caminho. Quase sempre é uma pedra, das que Drummond falou como ninguém.




Na grandeza do  mundo, ninguém acha o  fim da linha.
Você caminha
caminha
sem saber se fim a estrada tinha.
Você caminha
caminha
O fim não vê, nem vê a linha.

segunda-feira, outubro 05, 2009

pintores e amores

As paredes eram brancas. De tão vazias doíam aos olhos e causavam certo descontentamento porque nada poderia ser tão limpo, branco ao ponto de não se traduzir em qualquer mensagem.
Vieram, pois, os pincéis e se puseram a com as paredes conversar, a nelas imprimir sentimentos e sentidos, aos poucos, com a mesma calma de velhos professores que, com avançada idade, já não tem pressa de cumprir a missão assumida.
Os ensinamentos que traziam eram um mundo novo, encantamento sem fim. A primeira lição foi o Dom Quixote e Sancho Pança, de Portinari. A imagem era engraçada e deu um especial colorido às paredes, que quiseram rir, mas não puderam porque, como se sabe, elas apenas tem ouvidos, mas boca lhes falta.
A segunda tela que os pincéis imprimiram nas paredes foi O nascimento de Vênus, de Botticelli. Nesse dia, as inexperientes alunas imaginaram que haviam conhecido o que de mais bonito existia no mundo, ocasião em que se depararam com a terceira tela: Santa Inês, de José de Ribera, quando conheceram um confuso conceito de silêncio contemplativo que os professores tentaram ensinar. Naquele mesmo dia, tiveram aulas sobre tristeza, na tela Mulher chorando, de Pablo Picasso.
Aprenderam, ainda, o significado da palavra "labor", em As respigadeiras, de Jean-François Millet e em Flagelação, de Vicente do Rego Monteiro. O sentido do vocábulo "desespero" encontraram em Naufrágio de Sírio, de Benedito Calixto de Jesus, enquanto o absurdo compreenderam em A persistência da memória, de Salvador Dalí.
Crescendo ia a convivência de duas realidades - a de quem não conheceu outra cor além da própria falta de cor e a de quem mergulhou em tantas tintas quantas eram as que sobre a terra existiam. Os respingos, as marcas que os pincéis traziam não escondiam a experiência dos que tudo procuram provar.
Os pincéis lecionavam, e, doutra forma, reaprendiam os próprios conceitos, pois as paredes, mesmo brancas, imóveis e só ouvidos, conseguiam, de sua forma, ensinar.
Ao cabo de todas as lições, viram-se as paredes repletas de tantas cores e formas que jamais haviam imaginado. Olhando-se ao espelho, sentiram-se perplexas. De abismadas, sentiram-se belas. De lindas, sentiram-se plenas. Nesse instante, irrompeu a fala da boca que outrora não possuíam. Agora, as paredes tinham lábios, língua, olhos e, surpreendentemente, coração. Gratas aos pincéis, de forma espantosa, sentiram-se capazes de amar e prontas para, com a boca que haviam ganhado, falar-lhes do sentimento nascido no coração vermelho que nelas os pincéis haviam estampado.

domingo, setembro 27, 2009

prodigalidade

Sempre fui simpática ao ato de economizar palavras. Utilizava-as com cautela, temendo que se gastassem, como a sola de um sapato ou um disco que viesse a ser arranhado pela agulha da vitrola. Mas não. Imaturidade minha quando pensava tanto antes de soltar dois ou três conjuntos de letras, cheia de cuidado, num imenso medo de afundá-las num  mar de desentendimento e perdê-las para sempre.
Mais tarde descobri que poupar palavras é, no fundo, uma grande bobagem. Não lamentava mais seu uso e jamais me arrependia de tê-las, um dia, posto à luz. Afinal, não passam de algumas letras e a vida se mantém de outros fatores cuja importância ultrapassa estes tais significantes gráficos, de modo que economia, definitivamente, não se aplica às palavras.
Não bastasse isso, elas se reproduzem de uma maneira inacreditável e, quanto mais usadas, mais apuradas ficam, mais maduras se tornam, mais cheias de significado se desenham, enfim.
Vejo, assim, que fiz bem em não haver tido piedade em colocar palavras em todo lugar, em pregá-las no teto, em pisá-las no chão, em haver cuspido algumas e lhes cuspido a cara. Queimei, ainda, outras tantas e rasguei várias. Amassei certas delas e arremessei ao lixo. Esbanjei, apostei-as no jogo e não tinham elas fim.
Fiz delas confetes no carnaval, soltando-as ao vento. Fiz delas almoço, comendo-as até a satisfação plena. Fiz delas pandeiro, dando cadência a tudo em volta.
O que se fala é para isso mesmo, só tem um destino: submeter-se a nosso gosto.
Por fim, tomei um bom punhado de palavras, transformei-as em quebra-cabeça e com elas brinquei até que o jogo ganhasse contornos de tédio.

quinta-feira, setembro 24, 2009

por mais uma estação

com seus passos mansos, leves, lentos, mornos para o verão
liguem os olhos vocês verão, vocês verão
de vera, estou falando de vera
de vera, de vera da primavera
(...)
só me dá cansaço o passo, o laço dos olhares côncavos
só me dá cansaço o passo, o laço dos olhares côncavos

de palavras castas, mudas, tardes, mortas para viajem
de ver as coisas, as coisas primas da primavera
(De vera - Novos Baianos)


Talvez por coincidência ou, quem sabe, por vontade do destino, apenas tardiamente me foi possível perceber a data que o calendário marcava. Não dei por conta, de imediato, do teu aviso.
Ontem, equinócio de primavera, a lua, anunciando a estação que dava as caras, fazia-se formosa no céu. Era vinte e três de setembro, ah, perdoe-me, era início da primavera e custei a notar.
É que a vida anda agitada e pensamentos tolos ocupam todo o espaço, pouco resta para as boas lembranças. Os últimos acontecimentos afugentam a um canto estreito da mente os fatos vividos naquele vinte e três do passado, de modo que chega esta data tão mansa, sem se fazer anunciar por trombetas, que quase, por muitíssimo pouco, passou-se esquecida.
Agora, puxo o fio da memória. Como cordel com seus folhetos pendurados, chegam-me as lembranças e sinto, descontroladamente, vontade de sorrir.
Lembro-me do desconcerto daquele dia vinte e três do mês de setembro. Recordo-me de nossa timidez mútua e dos gestos descompassados, do tremor nas mãos e rubor das faces. Ocorre-me o medo que transparecíamos a cada movimento receoso, à espera de contrapartida, a cada riso nervoso. Como esquecer nossa insegurança e incerteza recíprocas? Guardávamos em nós a confusão de sentir, de uma só vez, a dúvida sobre o querer do outro e a convicção do querer próprio.
E o filme corria solto na grande tela, longe dos nossos olhares, mais distante ainda dos nossos pensamentos. De que falaria ele? Não nos importamos em descobrir, pois pairava outra dúvida mais inquietante. A minha, por certo, eras tu.
Já me tinham ensinado as aulas de geografia que, em ocasiões como aquele vinte e três, os dois hemisférios do planeta recebiam igual calor. De fato, se eras uma banda do mundo, eu era a outra e o calor que recebíamos era absolutamente idêntico, vindo de uma só fonte.
Foi assim que naquele equinócio, fantasticamente, senti toda a primavera num mesmo dia. Diante dos fatos, eu não poderia jamais cogitar outra estação mais colorida e perfumada.
Religiosamente, comemorei a data ao longo dos anos, como um feriado, uma festa de santo. Era o dia vinte e três sempre uma ocasião de recordar, ou seja, colocar os livretos de cordel na corda da memória, numa espécie de literalidade da recordação, e arrastá-los pelo barbante da lembrança.
Certos anos a memória me trazia alegria, outros anos tristeza. Mas sempre estavas presente em cada uma das (co)memorações - e a memória era mesmo conjunta. Bem ou mal, estavas ali para trazer maiores sorrisos ou mais lágrimas causar.
Noutras épocas mais recentes, a memória permanecia, mas o ritual não se repetia. Tal qual beata que abandona a fé, larguei o culto, descuidando do festejo.
Este ano, relapsa como jamais havia sido, faltou-me pouco para esquecer a data por completo. Tu, porém, não permitiste. Haveria razão para lembrar? Sabemos que sim.
Bons ventos primaveris te trazem. Tu vens no vento, nas flores. Tu vens na data, caminhando na corda-bamba da recordação, no vinte e três de setembro, perpetuando-o, tornando-o dia de não se esquecer.

sexta-feira, setembro 18, 2009

entrecho

Entre. Escancara esse sorriso que não tem outro não, não tem outro dia para se sorrir.
Assim é que nos entreolhamos, entre dentes, deixando, entrementes, essa vontade de sorrir pra não acabar mais.
E esse nervoso sentimento, essa expectativa de o sorriso encerrar, que se entrelinha no nosso assunto? Não sei. Isso entrecorta o sorriso, entremete-se na alegria.
Entretanto, tu sabes, que o sorriso não acaba e, quando acaba, volta esse nosso entretenimento que é sorrir.
Entre nós, não há lagrima. Só o sorriso entreluz e assim deve ser. É que sorrir tem disso. No fim, sorrir é pura entrega, entrega pura é sorrir.

segunda-feira, setembro 07, 2009

samba e engano

Apesar do pesar e de todo lamento
a escolha foi tua e minha também
Ser livre é sempre um tormento
e há de afastar do que se quer bem

Se tu te colocas em primeiro plano
meu plano é ruína, fracasso será
Meu vestido de flores de pano
irei desvestir e luto usar

Já se vão respeito e coragem
pois não há imagem
que se preservar
se mataste o samba, não faze mais preces
tem o que mereces:
ver o samba calar.

sexta-feira, setembro 04, 2009

branco no preto

preto no branco, companheiro, na sinceridade, o ser humano é conversador por demais. eis nosso defeito incontrolável, nossa virtude.
"acorda, mademoiselle serpente
desfila na rua da inveja dessa gente
(...)
acorda milady
vem ver são joão
vem cá, vem dançar
com teu cazumbá
desperta do sono
derrama veneno
faz tua fuzarca
o teu carnaval"
(Zeca Baleiro, Ramiro Musotto e Celso Borges)

quarta-feira, setembro 02, 2009

verborragia

Serei breve. Não irei me alongar. Juro, não me demorarei demais. Serei curto, pois o que tenho a dizer são coisas que não são ditas.
Asseguro-te de que desaprendi a língua materna, a que nos criou, amamentou, deu-nos lições e, por fim, viu-nos pessoas feitas. Assim, já não há como falar. Partiram fala, vocabulário, compreensão.
Poderias dizer, talvez: "melhor assim, são coisas que não são ditas". Eu teimaria, como agora o faço. Teimaria resoluto, sem saber falar, numa teima, para além de muda, também analfabeta, abrindo a boca para o único que resta: o grito.
Por certo, repetirias: "são coisas que não são ditas" e eu insistiria contigo e te faria ouvir o que grito fosse se converter no reaprender da linguagem cotidiana, ocasião em que me faria eloqüente, num longo discurso. Da tribuna, ouvir-me-iam todos atentos e eu, de quando em quando, levaria o copo à boca, lavando a garganta em gelados goles de desespero, de quem sabe que, com a ferida aberta, perde sangue e palavras.
Tal qual orador da pior espécie, destes que muito falam sem nada dizer, encheria teus ouvidos de assuntos só meus e  choraria num ato infantil. Sim, não me esqueço de que estas são coisas que não são ditas. Mas que importa? É que não posso calar. Se for do teu agrado, ouve. Já não me é possível contar com paredes e para elas.
É isso desconhecer a língua mãe. É perder também sua proteção, seu cuidado materno. Agora, fogem-me sangue e palavras, nesta hemorragia de verbos. Repara em todo esse sangue. Vê que já perco a cor.
Mais outra vez sei que falarias: "isso são coisas que não são ditas". Ah, cala-te e ouve, só. Ajuda-me a conter isto que jorra, estanca o sangue que de mim se desprende e, se estiver ao teu alcance, ajuda-me a me recompor.

domingo, agosto 30, 2009

azougue

"Olhar colírico
Lirios plásticos do campo e do contracampo
Telástico CinemaScope teu sorriso, tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido"
(Caetano Veloso e Rogério Duprat)



Dois olhos, os dois olhos tímidos foram fortes o bastante para me arrancar de mim. Sem entender como poderia isso ter se dado, em tão pouco tempo, perderam eles a timidez e se encheram de uma coragem acre. Pura audácia eram eles afinal. Já tinham vida neles mesmos e não mais obedeciam teus racionais comandos, tornando-se ali como que meus.
Comigo, eram obedientes, executando, sem questionamentos, as ordens que de mim partiam. Mansos, não deixavam nada escapar, completamente subservientes, servis.
Eu, porém, nunca saberia o que deles fazer. Tinha-os e não os queria. Temia.
No desengano, perderam-se eles, embaraçados no caminho que trilharam ao me seguir.
Lançam, agora, os sinalizadores, em busca de qualquer resgate. Vencido o medo, não me demoro em ir-lhes ao encontro, embora desconfie da violência do momento.
Arrebate seremos. Guerra seremos. Força despudorosa é o que iremos ser.

quinta-feira, agosto 27, 2009

de presente

Envolvo teu presente em papel colorido. Junto, num embrulho cheio de cores, tudo que antes já mandei nos tons de cinza e preto de outrora. No pacote estão o que, de fato, para ti era e aquilo que apenas parcialmente era teu. Está o enredo riscado, rasgado e reescrito, além do diálogo mudo que se fez presente quando, ausentes tu e eu, cresceu o silêncio.
Vão, no mesmo volume, as palavras desmedidas e as milimetricamente pensadas, as perguntas, respostas, reperguntas e desrespostas. É tudo presente, não só porque está, de algum modo, no presente do indicativo, mas porque indica lembranças à sua maneira vividas, agora adornadas e transformadas em regalo.
O tempo presente é o que ofereço, pois. É este hoje, em todas as suas limitações, o que te envio. Se é verdade o carpe diem, na sua compreensão de que o presente, o agora, é, em si mesmo um presente, uma dádiva, está comigo toda a razão de querer embrulhá-lo num papel estampado.
Não deixaria jamais de mandar também algumas canções, e aqui estão elas, enlaçadas numa fita e postas no pacote que te preparo. Canções nem tristes, nem alegres, mas maduras, no ponto de serem degustadas. Acresci este pequeno feixe de melodias para que pudesse o pacote ganhar a leveza que delas é própria.
Ainda coloquei no embrulho a presença não sentida, as vozes ocultadas, as frases omitidas, os sorrisos não vistos. Não esqueci de colocar aqui também o mistério que já não assusta. Tampouco me olvidei do que restou incompreendido e do que, de tão evidente, buscou-se calar.
E, porque ainda há algum espaço, envio, ademais, a espera, este caquético e paciente exercício, sem deixar de remeter vinho, cachaça e muita embriaguez, enfim.
Pontual ou já tardio, aí está o presente, cheio de ontem e até, talvez, de amanhã. O embrulho que envio é carpe diem, é realidade, é certeza de que viver o presente, seja o momento ou o conteúdo do pacote, qualquer deles ou mesmo ambos, é boa escolha.

domingo, agosto 23, 2009

fusão



a vida congelada acerta os ponteiros da hora. agora, sem demora, derrete e se mete mundo afora, num ímpeto por ir embora. a mesma vida, escorreita, casta, desce vasta a ladeira, corajosa, se antes morosa, faz-se ligeira, na pressa pelo experimento. vívida, ganhou a vida alento na certeza de não mais congelar, de não mais sentir frio, de ver tudo virar rio, amores mil correndo pro mar.

quarta-feira, agosto 19, 2009

nem tudo é crer

Remeteu-me, desatentamente, uma promessa rota num bilhete mal feito. Com péssima caligrafia, em papel puído, enviou-me uma promessa morta antes mesmo de haver nascido. Feto morto a promessa, morta sem ter visto a luz do mundo.
Recebi aquelas palavras com coração frio, quase tão gélido quanto as carnes da promessa abortada. Fitando-a, não enxerguei vida, respiração não detectei. Logo, da minha frialdade, aflorou um pensamento discreto e tive pena das crianças que se vão tão cedo. Senti, com a pressa de quem lê uma notícia jornalística, que era injusto morrer sem ter vivido efetivamente.
Passaram-me, então, ligeiros na memória os ideais feministas, a descriminalização do aborto.
Se realmente estivesse eu diante de um jornal, tê-lo-ia fechado e abandonado-o a um canto da sala. A realidade, porém, era menos amena. Não estava diante de jornal algum, mas de uma promessa morta em um bilhete descuidado.
Diante do cadáver, resignei-me por velá-lo durante algumas horas. Na sua pequenez, tirou-me dos olhos um olhar piedoso com o qual cuidei por enterrar aquilo que morto estava.
De há muito, tinha eu as promessas como fetos abortados, expulsos das entranhas em virtude do temor. O medo da responsabilidade ou, no mais das vezes, o medo do novo é, sem dúvidas, letal e destrói, no seu âmago, tudo sobre a face da terra cuja existência não haja alcançado nove meses de gestação.

sábado, agosto 15, 2009

la ventana

Abrir portas, janelas, portões é tarefa boa.
Descer

rar trancas e abrir ferrolhos também. O esforço, porém, só é válido, e valido, quando a saída é para a rua. A porta para dentro de casa, a janela virada para o muro, não são porta nem janela, mas armário, que não serve para nada, e nada mesmo, além de amontoar. E olhe que não falo em amor toar, fazer versos e cantar amor. Não é isso. É amontoar, juntar entulho, sabe? Atravancar, colecionar inutilidades.
Juancito Calderón, menino rechonchudo, vizinho de janela (e não de porta) de Nina, não fazia cerimônia. Com seis anos, ninguém se ocupa com palavras eufêmicas ou censura e Juancito era da regra e não da exceção.
O pequeno Juan não tinha armários. Tudo nele era janelas. Sem constrangimento, atirava na cara de nina qualquer comentário que ouvia em casa a respeito da moça. Vez ou outra, dirigia-se a ela:
"Mi papá he dicho que eres mujer de la vida! La vida es tuya o tú eres de ella? Yo también quiero ser de la vida.", gritava-lhe janela afora.
Nina, com verdadeiro pudor, enrubescia. Ah! Juancito só tinha janelas.

quarta-feira, agosto 12, 2009

letras pérfidas

a palavra te pega
te acerta
te deita no chão de um golpe
um só golpe cego te faz morrer
perecer
bobo, entregas escudo e lança
te lanças no encanto e te perdes
não medes altura
não medes o medo, nem nada
e a palavra te fura
doida, cruel
e te jura
uma cura, a fartura
mas não há, não há céu.

mentira dela

terça-feira, agosto 11, 2009

ao público que parte, ao ator que se demora

Sério, passo cadenciado, atravessou a sala, xícara em riste, como uma arma pronta a disparar. Cada gole do mal preparado café era um tiro na boca, um gosto de morte. Via-se num emaranhado de pensamentos de imensa importância a seus olhos.
Ó modo mesquinho de enxergar a vida!
Dava voltas em torno da mesa e também em torno de si, já que seu movimento de translação e rotação tinha como centro ele mesmo, enquanto a cabeça girava, causando-lhe certa ânsia.
Largou a xícara, sentou-se ao sofá. Os olhos guardavam a expressão de imensa dor. A dor de um orgulho estraçalhado, estilhaços de orgulho pelo chão da casa.
Jamais tentaria juntar aqueles cacos. Agachar-se ante a derrota para colar-lhe os pedaços e conferir-lhe novo rosto era repugnante idéia, o cúmulo da humilhação, o cume da vergonha ferida. Não. Estava certo de que não se dobraria, ainda que manter ereta a espinha pudesse significar intenso sofrimento.
Ó impiedosa personagem!
Havia de recompor seu interior e tornar-lhe tão artificial quanto a própria cara, que nem de longe se mostrava confusa como sua alma. Enquanto houvesse espectadores, olhos, dentes, nariz, tudo sabia como se portar, como se fazer parecer inatingível.
Porque artificial, seu maior medo era que os outros o vissem desnudo, sem sua maquiagem, roteiro inconcluso. Tamanho era o esforço por se mostrar pleno e divinificado que pequenas derrotas cotidianas ganhavam ares de tragédias de dimensão mundial, tornavam-se catástrofes históricas.
O desespero invadia-o: que haveriam de pensar os espectadores de sua representação infinita? Assim, construia o que era com fundamento naquilo que os demais diziam a seu respeito.
Ó escravidão irrefreável!
Tão cedo não descobriria que havia se tornado platéia de si mesmo no seu monólogo narciso. Era roteirista, iluminador, diretor, ator solitário. A quem, pois, apeteceria ver-lhe representar? Todos já sabemos bem o fim de quem crê na própria ficção. O tema já não desperta interesse, de modo que o público sensato abandona as cadeiras e deixa vazio o teatro cheio de eco.

domingo, agosto 02, 2009

ensimesmar

Era em si mesma um mar, cheio de vida, de algas, de água e sal. Sal para salgar os dias, tirá-los da mesmice e fazê-los terem mais gosto e também mais gostar do mundo e das pessoas. Em si mesma(r) todo dia era seu ofício.
Quando estava consigo mesma, podia ser mar sem se preocupar em permitir aos outros a compreensão. Consigo, não precisava ser rasa e límpida, podia esconder mistérios, sereias, naufrágios e dúvidas. Por isso, gostava de estar assim, fechada nela mesma, e, desse modo, sentir-se grande, sem fim. Sentia-se também fluida e capaz de a qualquer compartimento se adaptar, ganhando-lhe a forma, ainda que sempre transbordando-o por ali não caber na sua dimensão imensurável.
Ensimesmar tornou-se, então, uma droga, vício diário, porém secreto. Atrás da porta, longe de quem quer que fosse, virava mar e inundava de pensamentos largos o ambiente, banhava-se nas suas próprias águas, lavando o rosto para sair à rua com novo ânimo, revigorada em si.