terça-feira, agosto 11, 2009

ao público que parte, ao ator que se demora

Sério, passo cadenciado, atravessou a sala, xícara em riste, como uma arma pronta a disparar. Cada gole do mal preparado café era um tiro na boca, um gosto de morte. Via-se num emaranhado de pensamentos de imensa importância a seus olhos.
Ó modo mesquinho de enxergar a vida!
Dava voltas em torno da mesa e também em torno de si, já que seu movimento de translação e rotação tinha como centro ele mesmo, enquanto a cabeça girava, causando-lhe certa ânsia.
Largou a xícara, sentou-se ao sofá. Os olhos guardavam a expressão de imensa dor. A dor de um orgulho estraçalhado, estilhaços de orgulho pelo chão da casa.
Jamais tentaria juntar aqueles cacos. Agachar-se ante a derrota para colar-lhe os pedaços e conferir-lhe novo rosto era repugnante idéia, o cúmulo da humilhação, o cume da vergonha ferida. Não. Estava certo de que não se dobraria, ainda que manter ereta a espinha pudesse significar intenso sofrimento.
Ó impiedosa personagem!
Havia de recompor seu interior e tornar-lhe tão artificial quanto a própria cara, que nem de longe se mostrava confusa como sua alma. Enquanto houvesse espectadores, olhos, dentes, nariz, tudo sabia como se portar, como se fazer parecer inatingível.
Porque artificial, seu maior medo era que os outros o vissem desnudo, sem sua maquiagem, roteiro inconcluso. Tamanho era o esforço por se mostrar pleno e divinificado que pequenas derrotas cotidianas ganhavam ares de tragédias de dimensão mundial, tornavam-se catástrofes históricas.
O desespero invadia-o: que haveriam de pensar os espectadores de sua representação infinita? Assim, construia o que era com fundamento naquilo que os demais diziam a seu respeito.
Ó escravidão irrefreável!
Tão cedo não descobriria que havia se tornado platéia de si mesmo no seu monólogo narciso. Era roteirista, iluminador, diretor, ator solitário. A quem, pois, apeteceria ver-lhe representar? Todos já sabemos bem o fim de quem crê na própria ficção. O tema já não desperta interesse, de modo que o público sensato abandona as cadeiras e deixa vazio o teatro cheio de eco.

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