quinta-feira, outubro 29, 2009

de tudo que não se diz

- Não quero terminar a vida assim. Já sinto cheiro de morte nas minhas roupas, cheiro de podre. Certamente vem de você.
- Ora, vamos. Isso não é jeito de falar. Não fica bem tanta grosseria, Ana. Sente-se, sim? Conversaremos como adultos. Acalme-se. Viu as fotos que revelei? Ficaram ótimas as fotos da viagem. Penso que logo faremos outra dessas e...
- Você cheira à morte.
- Ana...
- Morte antiga e já em decomposição avançada, cheia de baratas sarcófagas. Preciso vomitar.

Diálogos incontidos são feitos, em regra, de verdade nua e mal educada. A verdade despida, numa nudez plena, é devassa, ameaçadora à moral e bons costumes. A sociedade a nega.
Por temer a rejeição, fecho a boca ao mastigar e nunca bato à porta da vizinha para mostrar-lhe o juízo que, de fato, faço dela e dizer-lhe que deveria pagar o condomínio. Vivo no co-domínio das classes dominantes que ditam as regras de etiqueta. Vivo no auto-domínio, de pessoa dominada. Daí meu mastigar de boca fechada.
Tivemos uma história de contenção, gentileza, elogios, bom trato. Uma história de "bom-dias", de "você está tão bem hoje" e "durma bem". Urbanidade demais e sinceridade de menos foi nosso erro, termos vivido imersos num mundo de sorrisos corteses, batidas pedindo permissão para entrar e "com licenças" em demasia. Foi a maior falta que cometemos: sermos mais dois no mundo, iguais, em tudo, a todos os educados.
Não sabíamos, mas a educação luta contra nós e não a nosso favor. Estivéssemos eu e você nus, a verdade nua, os fatos teriam sido crus. Houvéssemos tirado a roupa a tempo, entrado nas vidas um do outro sem pedir gentilmente e dito as frases sem escolher criteriosamente as palavras, não seria hoje o cheiro acre, o sabor azedo, o incômodo e assombro póstumos. Não seria o fim triste de uma história comida por vermes.
Falemos sério. Afastemos, pelo menos por ora, a educação cotidiana. A história está podre sim e você, já não preciso nem mesmo falar, cheira à morte.

Aos "correligionários" que entre livros e amigos estão.

segunda-feira, outubro 26, 2009

so, fear

Sophia é um estado de espírito. Não seria nada estranho acordar e se sentir meio sophia o dia inteiro. Não seria também esquisito chegar ao trabalho e todos comentarem: "Que cara mais sophia é essa? Aconteceu alguma coisa?". Nem seria estapafúrdio demais abrir o jornal e ver a manchete: "Médicos persistem na busca pela cura do sophia".
Não importa o sexo, a cor, a idade. Basta ser humano para ser passível. É esta a única condição.



Sophia
Sofria
Não ria
Sentia
que um dia
morria
afogada na pia

Sophia
Sofria
O amor temia
A sorte não via
A vegonha doía
Acanhada Sophia
de tristeza entendia

Sophia
Sofria
Toda noite era fria
A esperança partia
machucando Sophia
Mas Sophia queria
o que só ela sabia

Sophia
Sofria
Mas sua dor lhe dizia
que acharia Sophia
o que só se escondia
Haveria Sophia
de encontrar alegria.

domingo, outubro 18, 2009

refeição

Eram maçãs em fatias
aqueles dias
doces manhãs               
tu eras sol em pedaços
estilhaços.
Iluminada vontade
atrasada vontade, já tarde
de tarde, o mormaço
um abraço, um olhar.
Mais uma noite só tua
escuro na rua
amor a clarear.
Nosso lar, o lagar
lugar do nosso próprio vinho
tu e teu pinho
tocando mais uma canção.
De uva em uva, de grão em grão
nossa casa tão nossa
na vitrola, uma bossa
o amor era o pão.
Se era pão, também era migalha
se a memória não falha
foi assim que findou.
Só migalha restou
do que tanto nos foi refeição.
De uva em uva, de grão em grão
o pedaço de sol virou pão
e de pão à migalha mudou.

terça-feira, outubro 13, 2009

à beira

Se eu pudesse resumir o mundo inteiro num só adjetivo, diria que ele é grande. Coração estreito, peito pequeno é coisa pouca, besteira demais no meio do caminho. Quase sempre é uma pedra, das que Drummond falou como ninguém.




Na grandeza do  mundo, ninguém acha o  fim da linha.
Você caminha
caminha
sem saber se fim a estrada tinha.
Você caminha
caminha
O fim não vê, nem vê a linha.

segunda-feira, outubro 05, 2009

pintores e amores

As paredes eram brancas. De tão vazias doíam aos olhos e causavam certo descontentamento porque nada poderia ser tão limpo, branco ao ponto de não se traduzir em qualquer mensagem.
Vieram, pois, os pincéis e se puseram a com as paredes conversar, a nelas imprimir sentimentos e sentidos, aos poucos, com a mesma calma de velhos professores que, com avançada idade, já não tem pressa de cumprir a missão assumida.
Os ensinamentos que traziam eram um mundo novo, encantamento sem fim. A primeira lição foi o Dom Quixote e Sancho Pança, de Portinari. A imagem era engraçada e deu um especial colorido às paredes, que quiseram rir, mas não puderam porque, como se sabe, elas apenas tem ouvidos, mas boca lhes falta.
A segunda tela que os pincéis imprimiram nas paredes foi O nascimento de Vênus, de Botticelli. Nesse dia, as inexperientes alunas imaginaram que haviam conhecido o que de mais bonito existia no mundo, ocasião em que se depararam com a terceira tela: Santa Inês, de José de Ribera, quando conheceram um confuso conceito de silêncio contemplativo que os professores tentaram ensinar. Naquele mesmo dia, tiveram aulas sobre tristeza, na tela Mulher chorando, de Pablo Picasso.
Aprenderam, ainda, o significado da palavra "labor", em As respigadeiras, de Jean-François Millet e em Flagelação, de Vicente do Rego Monteiro. O sentido do vocábulo "desespero" encontraram em Naufrágio de Sírio, de Benedito Calixto de Jesus, enquanto o absurdo compreenderam em A persistência da memória, de Salvador Dalí.
Crescendo ia a convivência de duas realidades - a de quem não conheceu outra cor além da própria falta de cor e a de quem mergulhou em tantas tintas quantas eram as que sobre a terra existiam. Os respingos, as marcas que os pincéis traziam não escondiam a experiência dos que tudo procuram provar.
Os pincéis lecionavam, e, doutra forma, reaprendiam os próprios conceitos, pois as paredes, mesmo brancas, imóveis e só ouvidos, conseguiam, de sua forma, ensinar.
Ao cabo de todas as lições, viram-se as paredes repletas de tantas cores e formas que jamais haviam imaginado. Olhando-se ao espelho, sentiram-se perplexas. De abismadas, sentiram-se belas. De lindas, sentiram-se plenas. Nesse instante, irrompeu a fala da boca que outrora não possuíam. Agora, as paredes tinham lábios, língua, olhos e, surpreendentemente, coração. Gratas aos pincéis, de forma espantosa, sentiram-se capazes de amar e prontas para, com a boca que haviam ganhado, falar-lhes do sentimento nascido no coração vermelho que nelas os pincéis haviam estampado.