domingo, setembro 27, 2009

prodigalidade

Sempre fui simpática ao ato de economizar palavras. Utilizava-as com cautela, temendo que se gastassem, como a sola de um sapato ou um disco que viesse a ser arranhado pela agulha da vitrola. Mas não. Imaturidade minha quando pensava tanto antes de soltar dois ou três conjuntos de letras, cheia de cuidado, num imenso medo de afundá-las num  mar de desentendimento e perdê-las para sempre.
Mais tarde descobri que poupar palavras é, no fundo, uma grande bobagem. Não lamentava mais seu uso e jamais me arrependia de tê-las, um dia, posto à luz. Afinal, não passam de algumas letras e a vida se mantém de outros fatores cuja importância ultrapassa estes tais significantes gráficos, de modo que economia, definitivamente, não se aplica às palavras.
Não bastasse isso, elas se reproduzem de uma maneira inacreditável e, quanto mais usadas, mais apuradas ficam, mais maduras se tornam, mais cheias de significado se desenham, enfim.
Vejo, assim, que fiz bem em não haver tido piedade em colocar palavras em todo lugar, em pregá-las no teto, em pisá-las no chão, em haver cuspido algumas e lhes cuspido a cara. Queimei, ainda, outras tantas e rasguei várias. Amassei certas delas e arremessei ao lixo. Esbanjei, apostei-as no jogo e não tinham elas fim.
Fiz delas confetes no carnaval, soltando-as ao vento. Fiz delas almoço, comendo-as até a satisfação plena. Fiz delas pandeiro, dando cadência a tudo em volta.
O que se fala é para isso mesmo, só tem um destino: submeter-se a nosso gosto.
Por fim, tomei um bom punhado de palavras, transformei-as em quebra-cabeça e com elas brinquei até que o jogo ganhasse contornos de tédio.

quinta-feira, setembro 24, 2009

por mais uma estação

com seus passos mansos, leves, lentos, mornos para o verão
liguem os olhos vocês verão, vocês verão
de vera, estou falando de vera
de vera, de vera da primavera
(...)
só me dá cansaço o passo, o laço dos olhares côncavos
só me dá cansaço o passo, o laço dos olhares côncavos

de palavras castas, mudas, tardes, mortas para viajem
de ver as coisas, as coisas primas da primavera
(De vera - Novos Baianos)


Talvez por coincidência ou, quem sabe, por vontade do destino, apenas tardiamente me foi possível perceber a data que o calendário marcava. Não dei por conta, de imediato, do teu aviso.
Ontem, equinócio de primavera, a lua, anunciando a estação que dava as caras, fazia-se formosa no céu. Era vinte e três de setembro, ah, perdoe-me, era início da primavera e custei a notar.
É que a vida anda agitada e pensamentos tolos ocupam todo o espaço, pouco resta para as boas lembranças. Os últimos acontecimentos afugentam a um canto estreito da mente os fatos vividos naquele vinte e três do passado, de modo que chega esta data tão mansa, sem se fazer anunciar por trombetas, que quase, por muitíssimo pouco, passou-se esquecida.
Agora, puxo o fio da memória. Como cordel com seus folhetos pendurados, chegam-me as lembranças e sinto, descontroladamente, vontade de sorrir.
Lembro-me do desconcerto daquele dia vinte e três do mês de setembro. Recordo-me de nossa timidez mútua e dos gestos descompassados, do tremor nas mãos e rubor das faces. Ocorre-me o medo que transparecíamos a cada movimento receoso, à espera de contrapartida, a cada riso nervoso. Como esquecer nossa insegurança e incerteza recíprocas? Guardávamos em nós a confusão de sentir, de uma só vez, a dúvida sobre o querer do outro e a convicção do querer próprio.
E o filme corria solto na grande tela, longe dos nossos olhares, mais distante ainda dos nossos pensamentos. De que falaria ele? Não nos importamos em descobrir, pois pairava outra dúvida mais inquietante. A minha, por certo, eras tu.
Já me tinham ensinado as aulas de geografia que, em ocasiões como aquele vinte e três, os dois hemisférios do planeta recebiam igual calor. De fato, se eras uma banda do mundo, eu era a outra e o calor que recebíamos era absolutamente idêntico, vindo de uma só fonte.
Foi assim que naquele equinócio, fantasticamente, senti toda a primavera num mesmo dia. Diante dos fatos, eu não poderia jamais cogitar outra estação mais colorida e perfumada.
Religiosamente, comemorei a data ao longo dos anos, como um feriado, uma festa de santo. Era o dia vinte e três sempre uma ocasião de recordar, ou seja, colocar os livretos de cordel na corda da memória, numa espécie de literalidade da recordação, e arrastá-los pelo barbante da lembrança.
Certos anos a memória me trazia alegria, outros anos tristeza. Mas sempre estavas presente em cada uma das (co)memorações - e a memória era mesmo conjunta. Bem ou mal, estavas ali para trazer maiores sorrisos ou mais lágrimas causar.
Noutras épocas mais recentes, a memória permanecia, mas o ritual não se repetia. Tal qual beata que abandona a fé, larguei o culto, descuidando do festejo.
Este ano, relapsa como jamais havia sido, faltou-me pouco para esquecer a data por completo. Tu, porém, não permitiste. Haveria razão para lembrar? Sabemos que sim.
Bons ventos primaveris te trazem. Tu vens no vento, nas flores. Tu vens na data, caminhando na corda-bamba da recordação, no vinte e três de setembro, perpetuando-o, tornando-o dia de não se esquecer.

sexta-feira, setembro 18, 2009

entrecho

Entre. Escancara esse sorriso que não tem outro não, não tem outro dia para se sorrir.
Assim é que nos entreolhamos, entre dentes, deixando, entrementes, essa vontade de sorrir pra não acabar mais.
E esse nervoso sentimento, essa expectativa de o sorriso encerrar, que se entrelinha no nosso assunto? Não sei. Isso entrecorta o sorriso, entremete-se na alegria.
Entretanto, tu sabes, que o sorriso não acaba e, quando acaba, volta esse nosso entretenimento que é sorrir.
Entre nós, não há lagrima. Só o sorriso entreluz e assim deve ser. É que sorrir tem disso. No fim, sorrir é pura entrega, entrega pura é sorrir.

segunda-feira, setembro 07, 2009

samba e engano

Apesar do pesar e de todo lamento
a escolha foi tua e minha também
Ser livre é sempre um tormento
e há de afastar do que se quer bem

Se tu te colocas em primeiro plano
meu plano é ruína, fracasso será
Meu vestido de flores de pano
irei desvestir e luto usar

Já se vão respeito e coragem
pois não há imagem
que se preservar
se mataste o samba, não faze mais preces
tem o que mereces:
ver o samba calar.

sexta-feira, setembro 04, 2009

branco no preto

preto no branco, companheiro, na sinceridade, o ser humano é conversador por demais. eis nosso defeito incontrolável, nossa virtude.
"acorda, mademoiselle serpente
desfila na rua da inveja dessa gente
(...)
acorda milady
vem ver são joão
vem cá, vem dançar
com teu cazumbá
desperta do sono
derrama veneno
faz tua fuzarca
o teu carnaval"
(Zeca Baleiro, Ramiro Musotto e Celso Borges)

quarta-feira, setembro 02, 2009

verborragia

Serei breve. Não irei me alongar. Juro, não me demorarei demais. Serei curto, pois o que tenho a dizer são coisas que não são ditas.
Asseguro-te de que desaprendi a língua materna, a que nos criou, amamentou, deu-nos lições e, por fim, viu-nos pessoas feitas. Assim, já não há como falar. Partiram fala, vocabulário, compreensão.
Poderias dizer, talvez: "melhor assim, são coisas que não são ditas". Eu teimaria, como agora o faço. Teimaria resoluto, sem saber falar, numa teima, para além de muda, também analfabeta, abrindo a boca para o único que resta: o grito.
Por certo, repetirias: "são coisas que não são ditas" e eu insistiria contigo e te faria ouvir o que grito fosse se converter no reaprender da linguagem cotidiana, ocasião em que me faria eloqüente, num longo discurso. Da tribuna, ouvir-me-iam todos atentos e eu, de quando em quando, levaria o copo à boca, lavando a garganta em gelados goles de desespero, de quem sabe que, com a ferida aberta, perde sangue e palavras.
Tal qual orador da pior espécie, destes que muito falam sem nada dizer, encheria teus ouvidos de assuntos só meus e  choraria num ato infantil. Sim, não me esqueço de que estas são coisas que não são ditas. Mas que importa? É que não posso calar. Se for do teu agrado, ouve. Já não me é possível contar com paredes e para elas.
É isso desconhecer a língua mãe. É perder também sua proteção, seu cuidado materno. Agora, fogem-me sangue e palavras, nesta hemorragia de verbos. Repara em todo esse sangue. Vê que já perco a cor.
Mais outra vez sei que falarias: "isso são coisas que não são ditas". Ah, cala-te e ouve, só. Ajuda-me a conter isto que jorra, estanca o sangue que de mim se desprende e, se estiver ao teu alcance, ajuda-me a me recompor.