sexta-feira, janeiro 22, 2010

caixa de bonecas




Quando não houver mais nada a fazer 
Leia tranquilo o seu jornal
Converse com a televisão
Prepare um café para dois
E sorva, por fim, ambas as xícaras.


Chegará um momento em que tudo se tornará insípido ao ponto de fazer nascer em nós a certeza de que as possibilidades já não existem e que sempre nos empenhamos em perder nosso tempo. Descobriremos, então, que não fomos mais que recíprocos passatempos, joguetes, mútuas distrações .
Nesse dia, já tão próximo, sentiremos que a brincadeira se tornou maçante, da mesma forma que me ocorria na infância, quando eu montava a casinha inteira, no entanto, terminada a empreitada, já havia me desgastado o suficiente para não sentir vontade de me divertir com as bonecas. Era sempre assim. Tão logo as minhas pequenas ganhavam um lar, voltavam para a caixa, resignadas e tristonhas, tudo porque eu havia me demorado demais nos preparativos.
Seremos nós a mesma brincadeira interrompida, para a qual faltou vontade de continuar. Já que nos preocupamos demais com a disposição dos móveis, que gastamos uma eternidade escolhendo onde poríamos a mesinha com suas respectivas cadeiras e onde ficaria a geladeirazinha, não mais brincaremos. O que o futuro poderá nos reservar será somente a falta de vida, a rigidez plástica daquelas bonecas. Junto delas, guardaremos nossos sentimentos, expectativas, nosso futuro que não virá. Estava tudo fadado ao fundo da caixa, à sorte das bonecas, ao prematuro fim.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

que nunca apaga





"There is a light that never goes out" dizia a canção
"There is a light that never goes out" pensava eu
There is a light...


Parecia-me piegas mergulhar-me nesses pensamentos, afundar-me em recordações, submergir-me em fotos, cartões, presentes: afogar-me num amor vivido. No entanto, era bem assim tudo à minha volta. Era um mar todo sóbrio e estático, de águas frias e terrivelmente cheio de densidade.
Nunca havia visto águas tão concentradas e viscosas, que desafiavam descaradamente a lei do empuxo e me empurravam para uma profundidade esmagadora, a qual me comprimia com o peso de águas de chumbo.
Procurei ar, mas as músicas que eu ouvia eram cheias da mesma força, empapadas daquela água escura e pesada. Era amor, ainda amor ao meu redor.
Quem se aproximava de mim, as novas pessoas que me surgiam eram o mesmo amor, estavam imersas na mesma água e não eram capazes de me trazer à tona outra vez. Os filmes eram o amor. O trânsito nas ruas, o mesmo amor. Os livros? Sempre amor. Bares? O amor. O elevador do prédio era o mesmo, o mesmíssimo amor.
O mundo estava debaixo d'água e até aquela luz que nunca apagaria, como prometia a canção, estava completamente encharcada pelo amor. Ele havia inundado o que se pudesse imaginar, enquanto fugiam-me as esperanças de recuperar o ar.
A água alcançava o teto do apartamento e a vida parecia o episódio de Canudos e da Usina de Sobradinho, lembrava inundações catastróficas, fenômenos arrasadores da natureza e afins.
O problema maior é esta música  tão molhada. "There is a light, there is a light".... Começarei por trocar a canção.

sábado, janeiro 09, 2010

confissão (ou dos cansaços vitais)



Confesso o cansaço
de tudo que faço
da pressa do passo
do passo em que passo.
Confesso o cansaço
doutro trago, outro maço,
da fumaça e embaço.
No papel, outro traço
no papel que amasso.
Sempre, ainda, o cansaço
por não achar o que caço
neste tempo e espaço,
por sentir-me em um laço
feito de puro aço.
Outra vez o cansaço
de quem vive o embaraço
de encontrar-se em um crasso
poema sem fim.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

garoa




Subia pela estrada de terra num passo excessivamente apressado, sob a chuva mansa, de gotas esparsas, que apenas conseguiam erguer do solo um bafo quente. As minúsculas gotas apagavam o pó do chão e se misturavam ao suor de Joaquim, formando um líquido salgado, amálgama de nuvens derretidas e preocupações. O líquido lhe descia pela testa, atingindo-lhe os olhos, que piscavam irritadiços.
Seguia resolvido, esmagando, avidamente, as folhas e galhos ressequidos do chão, como um gigante cruel e ameaçador. Não olhava os detalhes do caminho nem se detinha para observar a fauna levemente molhada que decorava a estrada: alguns pardais, lagartixas e um ou outro cachorro - tudo ali absolutamente desimportante. Não chegavam sequer a compor o cenário, pois, naquele momento, nem mesmo cenário existia. Na ocasião, Joaquim era apenas preocupação.
Avistando a casa de Carminha, quis apressar ainda mais a marcha e já quase corria. Bateu à porta, numa cadência nervosa, e como não ouvisse qualquer resposta de dentro da casa, pôs-se a chamar pela noiva em alta voz.
Caminhou, em desespero, até a porta de trás, novamente chamando por Carminha, sem, contudo, haver obtido êxito. Feriu com batidas agoniadas as janelas, deu outros tantos gritos e até pensou em destelhar a casa para se certificar de que não havia ninguém ali. Desejou berrar em todas as línguas conhecidas sobre a terra até que a noiva lhe replicasse: “Estou aqui, meu bem”. Era inútil, mesmo porque não falava ele outros idiomas e, inclusive, o português da amada era pífio.
Decidiu-se, então, por falar com a vizinha de sua noiva, pois talvez aquela senhora a tivesse visto sair de casa ou quem sabe até soubesse para onde Carminha havia se dirigido naquela tarde. Melhor: podia a vizinha ter ouvido a noiva atender algum telefonema e haver escutado a voz do interlocutor, decifrando-lhe o nome.
A vizinha, porém, destacando que sempre foi uma mulher discreta, disse não haver reparado na moça:
- Faço questão de não saber da vida alheia e o senhor devia fazer o mesmo.
Joaquim não tinha tempo nem tampouco paciência para explicar àquela dona o motivo de seus questionamentos. Com os olhos marejados e repetindo em altura quase inaudível o nome de Carminha, voltou à porta dianteira da casa e nela encostado, resvalou até o chão, enterrou a cabeça entre os joelhos e teve vontade de chorar compulsivamente, abandonando-se a pensamentos pungentes.
Sem mais, a moça abriu a porta, fazendo o noivo cair de costas, quase prostrado a seus pés. O rapaz levantou-se de qualquer jeito e beijou a moça, entre soluços. Carminha, numa tranqüilidade sobrenatural, com sorriso distraído, falou:
- Meu bem, você tomou chuva. A julgar pelo gosto dessas gotinhas em seu rosto, acho que é o primeiro caso de garoa salgada.
Abraçados, permaneceram quietos e silenciosos, na certeza de que as palavras eram desnecessárias ao momento. Contemplando o fenômeno dos chuviscos salgados, ali estavam, cúmplices, apaniguados, compartilhando, em segredo, o mistério daquela garoa. Joaquim sabia que, para Carminha, a chuva salgada seria muito mais inteligível que a realidade do rapaz, suas lágrimas, suor e inquietações. Melhor assim.