sexta-feira, junho 18, 2010

à leitura

Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.
José Saramago em Levantado do Chão, Ed. Caminho, 14.ª ed., p. 59





Ele, que tanto pensou e nos fez, junto com ele, também pensar, agora se vai. Deixa conosco, no entanto, esse tal "descasque miudinho duma palavra", que cada vez que é lida se renova, faz-se outra diante de nossas vistas nuas, e nos põe frente a ela abobalhados. Por isso esta discreta homenagem, ante a magia da escrita que Saramago tanto conheceu e nos permitiu dela experimentar. Continuará, pois a nos permitir, assim, indefinidamente.

quinta-feira, junho 03, 2010

da vida como um livro (aberto)


Minha vida é um livro aberto
e, amigo, é certo
que podes ler.



Sentou-se e pôs-se a folhear o livro que de há muito carregava. Parou em uma página qualquer, escolheu um parágrafo, aleatoriamente:"Otávio tinha os olhos no chão, apagados. Tinha medo da vida, das pontes e, principalmente, dos rios de correnteza forte".
Fechou o volume, abandonou-o entre as próprias mãos, esquecidas sobre as pernas. Imaginava que o personagem era um perfeito imbecil e tinha raiva dele. "Bom, se sofre - raciocinava ela - é porque merece. Os fracos merecem".
Pensou nas maledicências que poderiam, naquele momento, sair de sua boca, que poderia culpar aquele ser imaginário, preso em uma sequência de folhas de papel. Seria injusta, porém. Culparia quem já nasceu fadado a um só destino, estabelecido pelo autor da obra.
É verdade que havia romances como Dom Casmurro em que o leitor tem a prerrogativa de escolher o desfecho que considera mais apropriado. Todavia, quem nunca se perguntou sobre o que pensava Machado acerca de Capitu? Ao que parece, a opinião de quem lê já não é tão autônoma assim, nem se fazem mais leitores como antigamente. O que interessa mesmo, no entanto, é que aquele que lê até pode intervir, mas a própria Capitu nunca pôde dar a si o destino que bem queria: jamais conheceu o livre arbítrio. Assim, se traidora, de maneira alguma poderia ser, por tal, culpada.
Entre outras divagações, nossa leitora teve compaixão, sensibilizou-se com o destino dos personagens, sua vida prisioneira, ao passo que se alegrou consigo mesma, com as possibilidades que lhe surgiam, com a liberdade que possuía em não ser obra de mãos humanas.
Envolvida em um sentimento de tristeza e contentamento diluídos, como líquidos que se misturam em um copo, chorou mansamente aquela solução, derramando-a, gota a gota, num acalanto, embalada entre as lágrimas mornas de quem é livre mas não sabe o motivo e, por isso, preferia estar em um livro.