terça-feira, dezembro 14, 2010

o mundo, querida, é assim

As palavras lhe tinham ficado atravessadas na garganta na noite anterior. O medo das consequências das frases impensadas o fez vacilar e, hesitante, calar resignado ante a tempestade de acusações. Deitou ao lado dela, submisso. Olhos baixos, fingiu dormir. Na madrugada, porém, tateou à procura de um papel para registrar seus sentimentos e se fazer entender.
Na falta de termos, copiou, com o máximo de fidedignidade que a memória lhe permitiu, um trecho do último romance que havia lido, o "O amor nos tempos do cólera". A ideia de usar as palavras alheias para falar do que o afligia se fundava mais na ilusão de ter um bode expiatório, personificado no autor da obra, que na exata correspondência entre a narrativa e a vida real.
Estava descrente, embora não amargo;cético, ainda que não a ponto de se tornar desagradável. Tinha, para si, a máxima "A desilusão se aproxima mais de uma postura realista que desistente". De fato, não havia desistido de tentar, mas, talvez, de tentar daquela forma.
Acostumava o coração enquanto deslizava a caneta entre os dedos, respirando a brisa que corria janela adentro, como quem fugia das fracas luzes da rua. Consolava-se no silêncio que ali só se ouvia às três da madrugada, quando os passos ao redor cessavam e a cidade dormia um sono angelical, que a todos vinha: feios e belos, bons e maus, pobres e ricos, amantes e desacreditados.
Em boa, não obstante apressada caligrafia, pôs no papel:

O mundo, querida, é assim. Não devemos contrariá-lo: "Acabavam de celebrar as bodas de ouro matrimoniais, e não sabiam viver um instante sequer um sem o outro, e o sabiam cada vez menos à medida que recrudescia a velhice. Nem ele nem ela podiam dizer se essa servidão recíproca se fundava no amor ou na comodidade, mas nunca se haviam feito a pergunta com a mão no peito, porque ambos tinham sempre preferido ignorar a resposta."

Quis, ainda, completar, dizendo que estava convicto de que muitos que encontram amores asfixiantes - era assim que costumava se referir às paixões arrebatadoras - terminam sem eles, casando-se com qualquer estabilidade, contraindo matrimônio com qualquer certeza. Bem assim, quis acrescentar que a imensa maioria escolhe seu destino como quem compra um apartamento ou troca de carro: avalia os valores no mercado, observa os quilômetros rodados, os metros quadrados, a localização... Uma pequeníssima parte faz outro caminho, entregando-se por completo aos mandos e desmandos cardíacos. Ainda os mais ousados correm riscos, sujeitos a toda sorte de surpresas que podem desmoronar, de forma sempre mais dolorosa, o castelo de sonhos.
Partia resoluto para o lado dos covardes. Sentava-se, agora, em par com os acomodados sem grandes remorsos ou crises existenciais, o que lhe parecia muito justo e humano.
Antes de despontarem os primeiros raios de sol, apressou-se em deixar o escrito em um lugar visível, não sem antes colocar em letras miúdas:

"Bem ou mal, nosso caminho é a felicidade."


quinta-feira, novembro 18, 2010

há quem ame (a quem ame)

Quem quer que ame
queira você amar
queira você gostar
de querer
Ame por querer
ame por não escolher
quem você amará

Ame e, com você, leve
o que eu levo e você levará
o que quer que leve
em seu coração leve
sem peso, sem medo,
sem pesar

Leve, bem leve
quem quer que ame
ame bem, leve amor
quem quer que ame
ame, bem leve, amor.

sexta-feira, setembro 24, 2010

por mais uma estação



Talvez por coincidência ou, quem sabe, por vontade do destino, apenas tardiamente me foi possível perceber a data que o calendário marcava. Não dei por conta, de imediato, do teu aviso.
Ontem, equinócio de primavera, a lua, anunciando a estação que dava as caras, fazia-se formosa no céu. Era vinte e três de setembro, ah, perdoe-me, era início da primavera e custei a notar.
É que a vida anda agitada e pensamentos tolos ocupam todo o espaço, pouco resta para as boas lembranças. Os últimos acontecimentos afugentam a um canto estreito da mente os fatos vividos naquele vinte e três do passado, de modo que chega esta data tão mansa, sem se fazer anunciar por trombetas, que quase, por muitíssimo pouco, passou-se esquecida.
Agora, puxo o fio da memória. Como cordel com seus folhetos pendurados, chegam-me as lembranças e sinto, descontroladamente, vontade de sorrir.
Lembro-me do desconcerto daquele dia vinte e três do mês de setembro. Recordo-me de nossa timidez mútua e dos gestos descompassados, do tremor nas mãos e rubor das faces. Ocorre-me o medo que transparecíamos a cada movimento receoso, à espera de contrapartida, a cada riso nervoso. Como esquecer nossa insegurança e incerteza recíprocas? Guardávamos em nós a confusão de sentir, de uma só vez, a dúvida sobre o querer do outro e a convicção do querer próprio.
E o filme corria solto na grande tela, longe dos nossos olhares, mais distante ainda dos nossos pensamentos. De que falaria ele? Não nos importamos em descobrir, pois pairava outra dúvida mais inquietante. A minha, por certo, eras tu.
Já me tinham ensinado as aulas de geografia que, em ocasiões como aquele vinte e três, os dois hemisférios do planeta recebiam igual calor. De fato, se eras uma banda do mundo, eu era a outra e o calor que recebíamos era absolutamente idêntico, vindo de uma só fonte.
Foi assim que naquele equinócio, fantasticamente, senti toda a primavera num mesmo dia. Diante dos fatos, eu não poderia jamais cogitar outra estação mais colorida e perfumada.
Religiosamente, comemorei a data ao longo dos anos, como um feriado, uma festa de santo. Era o dia vinte e três sempre uma ocasião de recordar, ou seja, colocar os livretos de cordel na corda da memória, numa espécie de literalidade da recordação, e arrastá-los pelo barbante da lembrança.
Certos anos a memória me trazia alegria, outros anos tristeza. Mas sempre estavas presente em cada uma das (co)memorações - e a memória era mesmo conjunta. Bem ou mal, estavas ali para trazer maiores sorrisos ou mais lágrimas causar.
Noutras épocas mais recentes, a memória permanecia, mas o ritual não se repetia. Tal qual beata que abandona a fé, larguei o culto, descuidando do festejo.
Este ano, relapsa como jamais havia sido, faltou-me pouco para esquecer a data por completo. Tu, porém, não permitiste.
Bons ventos primaveris te trazem. Tu vens no vento, nas flores. Tu vens na data, caminhando na corda-bamba da recordação, no vinte e três de setembro, perpetuando-o, tornando-o dia de não se esquecer.

quarta-feira, setembro 15, 2010

logro

Perdoa a falta de juízo
e o meu jeito indeciso
de quem quer se desvencilhar,
mas logo vai se emaranhar
nesses teus olhos complacentes
qual me dissessem: "Mente, mente
que é tao bom estar assim,
amo saber que é para mim
que o que falseias se destina."

Então te conto outra história,
pinto castelos na memória,
torno ruínas casos reais,
fantasio coisas tais
que até me ponho a acreditar.
Este ofício de encenar,
de ilustrar como te agrada
sem remédio, sempre fada,
causa uma crença que te anima.

Por ver-te alegre é que hesito
quando te minto ou te omito.
E se outra vez floreio
te convido a um passeio
no qual te falo que a verdade
não é feita de alardes
mas do que te feliz
e te juro, eternamente, ser atriz.



sábado, agosto 28, 2010

morangos

Os sonhos de quando
se dorme ou se acorda
são sonhos que mando
para que tu mordas
qual fossem morangos
os sonhos de quando
os olhos abri.
Vi
que o real o sonho possui
imaginário, flui
e flui...
Eu fui
contigo ao infinito.



let me take you down
cause I'm going to
strawberry fields
nothing is real
and nothing to get hung about
strawberry fields forever
(john lennon/paul mccartney)

Adoro morangos, com verdadeira devoção e, talvez por isso, tenham eles me aparecido em sonho. Não se cuidava, todavia, dos campos de morangos da canção, era o doce da fruta na boca, com mais gosto de realidade que de morango mesmo. Tratava-se da cor da fruta, a textura, o sabor em uma fidedignidade inacreditável e mágica. 
Em mim, o sono e o mundo se diluem, confundem-se cotidiana e repetidamente. Acordar de um sonho é como continuar a dormir na realidade rotineira de sonhar dia-a-dia, bem como ter sonhos noturnos se assemelha a vivê-los de olhos abertos.

terça-feira, agosto 24, 2010

hiatos

Sempre soube das tuas ausências, do teu não-estar, que outrora me aflingia e inquietava. Jamais duvidei, porém, da verdade dos teus sentimentos, ainda que não os compreendesse na sua integralidade. Cá, comigo, imaginava que há "gostares e gostares" e tu tinhas o teu jeito de querer bem.
Acostumei-me com teu silêncio e, por te amar com leveza e serenidade, amei também teus intervalos de mim, tuas fugas sempre constantes e já esperadas. Habituei-me a acumular histórias para te contar quando do teu regresso, ocasião em que as resumia em duas ou três frases e, após, permanecia na minha confusa alegria de te ter outra vez.
Hoje, no descompasso de amar com a gratuidade dos sentimentos mais puros, amo-te como quem joga sonhos ao vento, pondo minha fé na promessa de que o universo inteiro se empenha em prol dos sentimentos verdadeiros. Porque amar é desprendimento, e tem a liberdade como pressuposto, caminho no vácuo dos teus hiatos com convicção, reparando no outro hiato, que é, agora, o nosso destino, sem medo por ainda, talvez sempre, desconhecê-lo.


segunda-feira, julho 26, 2010

comunicação oficial

Sentir os sentimentos de todos os dias tem das suas complicações. Já não se sabe o que é rotina do trabalho ou rotina da paixão... Uma vez me contaram de uma moça que, imaginem, levou  uma carta de amor à publicação em Diário Oficial. Por equívoco, entre a escrita de documento público e a elaboração de uma declaração, digamos, informal, acabou por misturar os textos e desembocou no vexame de haver confundido os papéis de funcionária pública e mulher apaixonada.


Se acordares bem cedo, não levantes da cama de imediato. Gasta uns cinco a sete minutos de olhos preguiçosos, na indecisão por acordar ou não. Levanta, então, desejando-me, sem que eu desperte, "bom dia", como quem queria desejar "boa noite" para prolongar-me o sono. 
Toma teu banho, escova os dentes e bebe aquele teu café forte diário. Vai ao trabalho, esperando que, tão logo eu acorde, pense que gostaria que teu dia fosse dos mais bonitos de julho. Inicia tuas atividades e telefonemas. Entre um pensamento e outro, que te corte a concentração uma imagem minha, um cheiro, um toque te ganhe a memória. 
Lê mais, escreve um outro bocado, puxa assunto com algum colega para descontrair o ambiente, mas, uma vez ainda, lembra de mim, uma piada contada ou uma história qualquer que te faça rir. Em contenção, pensa: "É esquisita esta vontade boba de rir". Sorri, mesmo assim, ainda que desconcertado.
Almoça, retoma as atividades com o mesmo ritmo, com as mesmas interrupções por pensamentos outros, porém igualmente a mim relativos, até que a tarde finde e tomes teu rumo de volta. 
No caminho, julga-te abobalhado, ridículo, crê que és fútil, talvez, mas sem perder o sorriso, sem cogitar a possibilidade de que o quadro mude. 
Cantarola um refrão antes de abrir a porta, desabotoando a camisa, sentindo-te em casa, no escuro da sala, como fosse o sol ainda nascendo, revigorando-te, preparando-te para o que, a ti, parecerá amanhecer.
Encontra-me em algum canto da casa com uma ânsia meio velada de matar as saudades e, da maneira mais suave, deseja-me "boa noite" como quem quer desejar "bom dia" para tornar lentas nossas horas conjuntas, nosso dia que ali iniciará.

sábado, julho 17, 2010

stuff II

Há textos que precisam de um complemento, feito fossem escritos em uma língua morta, desconhecida por quase a totalidade das pessoas. Stuff, o primeiro, de tão despretencioso, pareceu mais superficial do que se esperava. Uma explicação é necessária, antes que tudo que ele tinha a oferecer se resuma a uma descrição inútil de uma bolsa feminina, lotada de futilidades e prioridades absurdas.


- Você precisa se permitir, sabe?
- Ou permitir que os outros se permitam.
- É... Ou permitir a permissão aos outros...
- ...
- Mas que mania essa de se agarrar ao mundo e carregá-lo nas costas. Você não tem que se amarrar a tudo que passa a menos de dois metros de distância e nunca mais largar.
- Como um ímã, não é?
- Exato.
- Mas não é isso uma tendência nossa?
- A de ser ímã? Não. Bom, não sei. Veja, são mesmo indispensáveis essas três bolinhas de gude? Nostálgicas, eu sei, mas precisamente por isso! Batom vermelho? Há quanto tempo que não usa? A folha de gengibre... Bem, vá lá, mas todo o resto... A fita dupla-face? Absurdo, tudo absurdo! Entende?
- Penso que sim.
- Está na hora de mostrar a outra face da fita dupla, a outra personalidade. Ter uma personalidade dupla (-face) tem disso.
- Mas é que o outro lado também é adesivo.

sexta-feira, julho 16, 2010

stuff

Bem de manhã
quero uma filosofia vã
vã filosofia
para começar o dia
e para, enfim, também
terminá-lo bem.




Acordou cedo, colocou Clarice Lispector na bolsa, na vontade de uma enxurrada de fluxos de consciência ao longo daquele dia cheio de hábito, repetitivo, de rotina abafada.
Separou um papel e uma caneta para qualquer urgência, na certeza de que tê-los à disposição era como um kit para sobrevivência em uma ilha deserta. "Pois é, nunca se sabe."
Um chocolate para adoçar o amargo, um sachê de sal. "Engraçado... Ninguém desconfia o quão útil isso pode ser e, no entanto, finda que é."
Um guardanapo, um grampo de cabelos."De repente, surge uma porta, um cofre, não?"
Uma vela, um esmalte, junto com um batom de cor bem análoga: vermelho-sangue. No mesmo amontoado, uma anágua, um dicionário, um vidro pequeno de perfume. "Às vezes, este aroma me põe tonta. Será normal?"
Um potinho de azul-de-metileno, uma folha seca de gengibre, uma agulha de crochê. "Se me falta o que fazer... Tempo não é para que se perca."
Um barbante, um prego e uma fita adesiva perto do fim. "Prefiro a dupla-face... Parece mais comigo, digo, assim, em termos de personalidade."
Um suvenir que sua tia lhe trouxe do Rio de Janeiro, três bolinhas de gude. "São nostálgicas de tão verdes (ou serão azuis?)."
Já na soleira da porta, pronta para sair de casa, algo a impede: "Ah! E as chaves? Sabia que estava a esquecer alguma coisa!"

sexta-feira, julho 02, 2010

cardinais




  
Era noite. Acordou num sobressalto, confuso com o que havia sonhado. Sonho ou pesadelo? Jamais tal lhe havia ocorrido. As idéias passavam-lhe apressadas na mente para, em seguida, retornarem com igual rapidez. Levantou-se na escuridão, bebeu água em grandes goladas e sentou-se, ainda no breu, para recordar o sonho.
Desde onde era capaz de se lembrar, o sol era escaldante, tinha o corpo banhado em suor e corria numa imensa estrada de terra e pobre vegetação.
Ao longe, avistava a casa na qual adentraria ao fim do percurso. Lá encontrou oito imensas e antigas fotografias de pessoas aparentemente cheias de dignidade. Abaixo das imagens, havia oito vasos com flores extremamente ressequidas, de aparência milenar. Abandonando os retratos, deparou-se com quatro molduras sem qualquer foto e, ao lado delas, um envelope. Abriu-o, retirando dali o bilhete donde se lia: "Ferir-te-ei , em teus vinte e seis anos de medo, com meus setenta e oito punhais. Se queres outra oportunidade de viver, vai e faze diferente de tudo que já fizeste".
Eis o sonho. Que poderia ter querido ele dizer? Cheio de números e mistério... Dizem que os sonhos precisam ser interpretados. Tudo que eles querem falar não sai das entrelinhas e o medo é mesmo entendê-los mal.
De numerologia não compreendia, mas desconfiava que o mais importante era usar de toda a sensibilidade de que sempre dispôs e dar serventia ao despertar repentino.
Sabia que os números tinham tantas atribuições no mundo e a que mais lhe inspirava simpatia era as relações que estabelecem eles entre as pessoas, os vínculos de comunicação que podem ser firmados através deles. Não lhe causava o mesmo contentamento pensar nos números como base para o conceito de idade ou para as estastísticas do IBGE. Sempre gostou foi de gente: estar com gente, ver gente, sentir gente.
Pensando, pensando... Apostar! Havia de ser isso. Tão logo amanhecesse, correria à primeira casa lotérica e tentaria a sorte. Jamais havia jogado antes e seria isso qualquer coisa de diferente na sua vida.
A espera pelo sol se alongou, pois era tempo de chuva. Definitivamente, decidiu-se por não mais esperar e foi realizar sua tarefa.
À casa lotérica, percebeu que tinha poucos números para a Mega Sena e pôs-se a insistir com o atendente do estabelecimento:
- Veja, meu sonho me disse estes números nos quais quero apostar. Não posso  utilizar apenas estes?
- Infelizmente, senhor. Não insista mais. Peço que se retire, está atrapalhando a fila, vê?
Voltou para casa sem esperanças, nenhuma outra idéia lhe ocorria. Fatigado pelo exercício de procurar a melhor saída, anotou os números num papel, guardou-o no bolso e voltou a dormir, esperando que o próximo sonho lhe trouxesse mais orientações.
O dia corria e mal sabia ele, em pleno sono, que nunca usaria tanto de sua sensibilidade como dali a alguns instantes. Ao acordar, saberia exatamente o que fazer com aqueles números e confirmaria a tese que sempre cultivou de que também eles, e não só as palavras, podem ter algo a revelar.

sexta-feira, junho 18, 2010

à leitura

Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.
José Saramago em Levantado do Chão, Ed. Caminho, 14.ª ed., p. 59





Ele, que tanto pensou e nos fez, junto com ele, também pensar, agora se vai. Deixa conosco, no entanto, esse tal "descasque miudinho duma palavra", que cada vez que é lida se renova, faz-se outra diante de nossas vistas nuas, e nos põe frente a ela abobalhados. Por isso esta discreta homenagem, ante a magia da escrita que Saramago tanto conheceu e nos permitiu dela experimentar. Continuará, pois a nos permitir, assim, indefinidamente.

quinta-feira, junho 03, 2010

da vida como um livro (aberto)


Minha vida é um livro aberto
e, amigo, é certo
que podes ler.



Sentou-se e pôs-se a folhear o livro que de há muito carregava. Parou em uma página qualquer, escolheu um parágrafo, aleatoriamente:"Otávio tinha os olhos no chão, apagados. Tinha medo da vida, das pontes e, principalmente, dos rios de correnteza forte".
Fechou o volume, abandonou-o entre as próprias mãos, esquecidas sobre as pernas. Imaginava que o personagem era um perfeito imbecil e tinha raiva dele. "Bom, se sofre - raciocinava ela - é porque merece. Os fracos merecem".
Pensou nas maledicências que poderiam, naquele momento, sair de sua boca, que poderia culpar aquele ser imaginário, preso em uma sequência de folhas de papel. Seria injusta, porém. Culparia quem já nasceu fadado a um só destino, estabelecido pelo autor da obra.
É verdade que havia romances como Dom Casmurro em que o leitor tem a prerrogativa de escolher o desfecho que considera mais apropriado. Todavia, quem nunca se perguntou sobre o que pensava Machado acerca de Capitu? Ao que parece, a opinião de quem lê já não é tão autônoma assim, nem se fazem mais leitores como antigamente. O que interessa mesmo, no entanto, é que aquele que lê até pode intervir, mas a própria Capitu nunca pôde dar a si o destino que bem queria: jamais conheceu o livre arbítrio. Assim, se traidora, de maneira alguma poderia ser, por tal, culpada.
Entre outras divagações, nossa leitora teve compaixão, sensibilizou-se com o destino dos personagens, sua vida prisioneira, ao passo que se alegrou consigo mesma, com as possibilidades que lhe surgiam, com a liberdade que possuía em não ser obra de mãos humanas.
Envolvida em um sentimento de tristeza e contentamento diluídos, como líquidos que se misturam em um copo, chorou mansamente aquela solução, derramando-a, gota a gota, num acalanto, embalada entre as lágrimas mornas de quem é livre mas não sabe o motivo e, por isso, preferia estar em um livro. 

terça-feira, maio 25, 2010

vegetalidade da vida


Quiçá um novo conceito de poesia - se não for muita pretensão - a que denomino poesia ilustrada ou ilustração poética, a depender do ponto de vista.

domingo, maio 16, 2010

ao sol

Entre o dito e o omitido, entregou-se àquelas sensações, viveu alheia, dissecou canções e pôs ao sol sonhos pequenos, à chuva expostos, ao sereno, na serenidade de quem tem fé. Dançou descalça, sujou o pé, riu com altura, tomou café, saiu do rumo, desconcentrou. Tempo gastou, pensou bobagem, adolesceu, ganhou a rua e se perdeu, molhou os olhos e se encontrou. Sentiu pessoas, sua humanidade. Transparente, quis abraçar a cidade. Viu-se em tudo e tudo em si, quis ser agora, quis ser ali. Usou de sinceridade, até consigo, pensou que alguns tinham só umbigo, mas ela era aquilo, era mesmo aquilo: cinquenta quilos de alguém feliz.

terça-feira, maio 11, 2010

fugacidade

Há muitas maneiras de se falar sobre quão efêmeras são as coisas e dizer que a vida passa, incrivelmente ligeira, enquanto estamos aqui sentados.




Lo que se pasa es un sonido, es el viento en el hogar
Es todo el cambio, de todo y yo, es lo que, lejos, veo pasar




"Não esperes um dia indefinidamente. Faça com que ele aconteça." Escritor de autoajuda
"Não esperes a conjunção dos astros." Astrólogo
"Não esperes o juízo final para que te convertas." Pastor
"Não esperes pelo momento em que conhecerás todo o universo dos Reais." Matemático
"Não esperes a morte do planeta, cuida agora dele." Ambientalista

segunda-feira, maio 03, 2010

campainha

Love is the answer at least for most of the questions in my heart
Why are we here? And where do we go? And how come it's so hard?
Jack Johnson
 
 
 

- Para todas as perguntas que a imaginação é capaz de alcançar, existem respostas prontas, plenamente acabadas. As perguntas chegam, tocam a campainha e, prontamente, aparecem, solícitas, as respectivas respostas, que, vale dizer, só atendem ao chamado da própria sineta.
- Você fala sério? É uma espécie de oráculo...
- Seriíssimo.
- Posso testar?
- Vá em frente.
- Por que o céu é azul?
- Errado.
- O céu não é azul por acaso?
- A pergunta foi mal formulada, então é como se esquecesse de tocar a campainha.
- Hm. Vou tentar outra vez. O céu é azul por quê?
- Não...
- Azul. Por que o céu tem esta cor?
- Ainda não.
- Por que será que o céu é azul?
- Não, outra vez errado.
- Que tal assumir que não sabe a resposta?
- Permita-me, antes, fazer-lhe uma pergunta. Tens certeza de que o céu, para ti, é azul? Talvez tuas respostas não te apareçam por meu intermédio porque têm algo de só tuas, assim como tuas dúvidas, porque só tuas, apenas precisam ser vistas por ti e mais ninguém.

terça-feira, abril 06, 2010

espera

Espera
por uma longa era.
Mas, ao fim, você era,
era você mesmo o que quisera
eu?



Jamais imaginou que a espera se tornaria tão fiel companheira, vez que sempre se desesperou em razão de uma pressa constante, que lhe acompanhava a vida. Quando criança, era daquelas que, nas viagens em família, ocupava-se em perguntar a todo momento: "Já estamos perto? E agora? Estamos?".
Hoje, sabia que era capaz de esperar uma resposta por longos dias. Era-lhe possível gastar compridos meses com os olhos fixos no nada, muda e serena, no pacato mormaço do aguardo. Na ausência de vento, poderia aguardar com calma tamanha, a ponto de qualquer transeunte imaginar que se tratasse de uma mulher morta, mas de olhos vivos.
Só mesmo seus olhos denunciavam sobrevivência. Eram uns olhos rijos, qual flecha fincada no tronco de uma árvore, muito embora vivos de esperança, de quem espera e não cansa, numa espera firme e decidida.
Já havia escutado muito sobre amor e paixão, porém nada lhe havia marcado tanto quanto a metáfora "a paixão é uma espera de redes". Desde então, tinha plena convicção de que conhecia bem esse sentimento, que não tinha pressa de recolher suas redes, não obstante a calmaria das águas e o sobre-humano silêncio que havia sob elas. Passaria, pois, sem culpa ou arrependimento, anos a fio entre os fios trançados da espera, presa em seu emaranhado, enredada por vontade própria.

domingo, março 28, 2010

três

Hoje eu poderia preparar um café pra três
Desperdiçar sorrisos e encarar uma partida de xadrez
Poderia, a contragosto, perder gosto por meu chá
Ficar fazendo hora em nosso eterno "à trois", mas não
Mas não sei dizer, de modo exato, o que te fez partir
pra um lado tão escuro, eu tive medo, eu quis te impedir
Justificar que os erros caberiam em minha mão
e nada eles seriam dentro do teu coração, que é tão
Tão grande era o mar e o seu abraço bom
Bom mesmo era verão e, de janeiro, era bom o som
do teu violão e da conversa de nós três:
eu, você e o amor
Eu perderia mais um mês.

quinta-feira, março 04, 2010

cronologia de um amor

Um começo nas páginas de um diário

Eu vejo sinais no céu e nas minhas mãos. Prenúncios, sutis mensagens, que me anunciam que tudo dará certo. Não é preciso fé, pois tudo já está como que pronto. Os caminhos se cruzaram poeticamente. Não há medo. Não há passos em falso no cimento colocado há pouco.
Ah, tudo vai bem. Até o vento me faz sorrir... Acredito piamente em intuição e sensibilidade, seja esta minha ou dos outros.
Eu leio o melhor caminho nas coisas que meus olhos miram. Eu encontro evidências e conselhos a todo tempo. O mundo inteiro tem cheiro de pêra, que é o cheiro que eu mais gosto de todos os cheiros. O mundo  é bom.

Um meio numa conversa 

- Você não pode estar falando sério.
- Juro que estou.
- Falta de interrogações.
- Olhe aí! Outra vez uma pergunta sem interrogações. Você deveria ter dito "Falta de interrogações?". Mas não. Vem com um "Falta de interrogações" seco. Por favor!
- Isso não é nem nunca será razão para uma discussão.
- A falta de interregoções, em uma conversa escrita ou oral, é terrível. Não nota a crueldade de um diálogo assim? Não há maior indício de que não se interessa em nada na conversa.
- Você quer complicar as coisas.
- Se isso foi uma pergunta, quero sim.


Um fim num poema

Vai embora devagar
que a noite hoje já
é tão alta, meu bem.
Em grave voz,
grave bem o amor que nós
construímos, mas também
grave este instante
antes que o galo cante
e a noite vá. Grave
a gravidade no meu rosto
e o gosto, o gosto
de saber que já não há.
Grave esta sala de estar
e o nosso último jantar,
grave aquilo que está
nos consumindo.



sábado, fevereiro 20, 2010

mais cara, mais rosto

"E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara."
Clarice Lispector em Felicidade Clandestina



De fato, não é que haja uma máscara que esconde teu rosto. A máscara não é um objeto interposto entre tua face e a minha. Não. O teu rosto é a máscara mesma.
Quero, com isso, dizer que não tens uma cara, assim, de carne e osso, não tens. É por isso que não podes dar a cara à tapa, não podes arriscar. É pelo mesmo motivo que não posso chamar-te cara de pau, indignada com os atos teus que desaprovo.
Se não tens cara, que poderia eu esperar? Vergonha na cara? Naturalmente que não. Sem rosto, não terias onde pôr a tal vergonha.
Por mais triste, só possuis este disfarce que te veste a face que não tens. Não posso, assim, dizer que escondes, atrás de todo esse papel machê, uma real identidade. Compadeço-me porque sequer podes fingir ser quem não és.
O carnaval passa e, enquanto todos guardamos fantasias, plumas e confetes para o outro ano, tu permaneces mascarado, alongando para sempre tua folia solitária.
De cá, continuo compenetrada na tua máscara, sentindo por jamais te poder conhecer a fundo. É que, se quem vê cara não vê coração, imagine-se, então, quem nem cara vê.


quarta-feira, fevereiro 17, 2010

aperto















Em uma noite das mais quentes de um verão morno, estava deitada à cama, de olhos cerrados, experimentando as carícias de uma brisa tímida. A casa era um silêncio de sombras longas e as pálpebras pesavam como se houvesse uma venda sobre elas.
Nada em volta: nenhuma companhia, nenhum barulho. O ar seco, noite adentro, invadia-lhe os pulmões, inebriando-a num sentimento sem definição. Não se parecia com o aperto da saudade, que tantas vezes lhe contraiu o peito. Não chegava perto de ser tristeza, pois nada tinha de aperto na alma, aquele aperto apto a extrair lágrimas dos olhos. Não se tratava também de medo, que mais parece um aperto nas entranhas, revirando e arrancando as vísceras. Tampouco era felicidade, aquela que nos estampa um sorriso, dentes à mostra, apertando-nos os olhos, tornando-os pequeninos, perdidos na face.
As cortinas, nesse intervalo, dançavam, no quarto negro, um balé sem holofotes. Subiam e desciam numa sincronia magistral e o vento, agora, cantava uma canção branda, cheia de singeleza.
O sentimento traduzido num aperto sem nome lhe acompanhava a respiração, permanecia no ar com a quietude de quem vela o sono de uma criança ao berço. Tratava-se da magia dos sentimentos anônimos, que retirava o chão, a cama, e fazia todo o corpo levitar na penumbra, suspenso em um aperto que agarrava cada poro, erguia cada célula do corpo até que fosse a luz da alcova acesa.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

as bolachas

- A vida tem sido difícil.
- Sim...
- Ando meio desenganado.
- Também pudera.
- Estou certo que inclusive as crônicas diminuíram de tamanho. Nem os escritores tem mais tempo. E olhe que tempo nunca lhes faltou em outras épocas.
- Sim. E os pacotes de bolachas também.
- Como?
- Diminuíram.
- Tem razão.
- Grande diálogo, ham? Tem algo de moderno, de tempo apertado.
- De pacote de bolachas.

Eu poderia lhe dizer que não pegue esse avião,
que não perca a sessão
de um céu feito cinema,
que não entre nesse esquema
de trocar teu futebol por um empreguinho à toa,
quando a água está tão boa 
e o mar é bem ali.
Poderia lhe pedir
que não corra,
que não morra,
que não deixe de falar,
de sonhar
sem chão,
de cantar no chuveiro,
que não pense não,
nem demais nem tão ligeiro,
que não coma tão depressa,
que não esqueça tua promessa
de ser um ser humano.
Mas Marte, Urano
estão de nós distantes
e tu, porque humano,
tens fome embora cantes.

sexta-feira, janeiro 22, 2010

caixa de bonecas




Quando não houver mais nada a fazer 
Leia tranquilo o seu jornal
Converse com a televisão
Prepare um café para dois
E sorva, por fim, ambas as xícaras.


Chegará um momento em que tudo se tornará insípido ao ponto de fazer nascer em nós a certeza de que as possibilidades já não existem e que sempre nos empenhamos em perder nosso tempo. Descobriremos, então, que não fomos mais que recíprocos passatempos, joguetes, mútuas distrações .
Nesse dia, já tão próximo, sentiremos que a brincadeira se tornou maçante, da mesma forma que me ocorria na infância, quando eu montava a casinha inteira, no entanto, terminada a empreitada, já havia me desgastado o suficiente para não sentir vontade de me divertir com as bonecas. Era sempre assim. Tão logo as minhas pequenas ganhavam um lar, voltavam para a caixa, resignadas e tristonhas, tudo porque eu havia me demorado demais nos preparativos.
Seremos nós a mesma brincadeira interrompida, para a qual faltou vontade de continuar. Já que nos preocupamos demais com a disposição dos móveis, que gastamos uma eternidade escolhendo onde poríamos a mesinha com suas respectivas cadeiras e onde ficaria a geladeirazinha, não mais brincaremos. O que o futuro poderá nos reservar será somente a falta de vida, a rigidez plástica daquelas bonecas. Junto delas, guardaremos nossos sentimentos, expectativas, nosso futuro que não virá. Estava tudo fadado ao fundo da caixa, à sorte das bonecas, ao prematuro fim.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

que nunca apaga





"There is a light that never goes out" dizia a canção
"There is a light that never goes out" pensava eu
There is a light...


Parecia-me piegas mergulhar-me nesses pensamentos, afundar-me em recordações, submergir-me em fotos, cartões, presentes: afogar-me num amor vivido. No entanto, era bem assim tudo à minha volta. Era um mar todo sóbrio e estático, de águas frias e terrivelmente cheio de densidade.
Nunca havia visto águas tão concentradas e viscosas, que desafiavam descaradamente a lei do empuxo e me empurravam para uma profundidade esmagadora, a qual me comprimia com o peso de águas de chumbo.
Procurei ar, mas as músicas que eu ouvia eram cheias da mesma força, empapadas daquela água escura e pesada. Era amor, ainda amor ao meu redor.
Quem se aproximava de mim, as novas pessoas que me surgiam eram o mesmo amor, estavam imersas na mesma água e não eram capazes de me trazer à tona outra vez. Os filmes eram o amor. O trânsito nas ruas, o mesmo amor. Os livros? Sempre amor. Bares? O amor. O elevador do prédio era o mesmo, o mesmíssimo amor.
O mundo estava debaixo d'água e até aquela luz que nunca apagaria, como prometia a canção, estava completamente encharcada pelo amor. Ele havia inundado o que se pudesse imaginar, enquanto fugiam-me as esperanças de recuperar o ar.
A água alcançava o teto do apartamento e a vida parecia o episódio de Canudos e da Usina de Sobradinho, lembrava inundações catastróficas, fenômenos arrasadores da natureza e afins.
O problema maior é esta música  tão molhada. "There is a light, there is a light".... Começarei por trocar a canção.

sábado, janeiro 09, 2010

confissão (ou dos cansaços vitais)



Confesso o cansaço
de tudo que faço
da pressa do passo
do passo em que passo.
Confesso o cansaço
doutro trago, outro maço,
da fumaça e embaço.
No papel, outro traço
no papel que amasso.
Sempre, ainda, o cansaço
por não achar o que caço
neste tempo e espaço,
por sentir-me em um laço
feito de puro aço.
Outra vez o cansaço
de quem vive o embaraço
de encontrar-se em um crasso
poema sem fim.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

garoa




Subia pela estrada de terra num passo excessivamente apressado, sob a chuva mansa, de gotas esparsas, que apenas conseguiam erguer do solo um bafo quente. As minúsculas gotas apagavam o pó do chão e se misturavam ao suor de Joaquim, formando um líquido salgado, amálgama de nuvens derretidas e preocupações. O líquido lhe descia pela testa, atingindo-lhe os olhos, que piscavam irritadiços.
Seguia resolvido, esmagando, avidamente, as folhas e galhos ressequidos do chão, como um gigante cruel e ameaçador. Não olhava os detalhes do caminho nem se detinha para observar a fauna levemente molhada que decorava a estrada: alguns pardais, lagartixas e um ou outro cachorro - tudo ali absolutamente desimportante. Não chegavam sequer a compor o cenário, pois, naquele momento, nem mesmo cenário existia. Na ocasião, Joaquim era apenas preocupação.
Avistando a casa de Carminha, quis apressar ainda mais a marcha e já quase corria. Bateu à porta, numa cadência nervosa, e como não ouvisse qualquer resposta de dentro da casa, pôs-se a chamar pela noiva em alta voz.
Caminhou, em desespero, até a porta de trás, novamente chamando por Carminha, sem, contudo, haver obtido êxito. Feriu com batidas agoniadas as janelas, deu outros tantos gritos e até pensou em destelhar a casa para se certificar de que não havia ninguém ali. Desejou berrar em todas as línguas conhecidas sobre a terra até que a noiva lhe replicasse: “Estou aqui, meu bem”. Era inútil, mesmo porque não falava ele outros idiomas e, inclusive, o português da amada era pífio.
Decidiu-se, então, por falar com a vizinha de sua noiva, pois talvez aquela senhora a tivesse visto sair de casa ou quem sabe até soubesse para onde Carminha havia se dirigido naquela tarde. Melhor: podia a vizinha ter ouvido a noiva atender algum telefonema e haver escutado a voz do interlocutor, decifrando-lhe o nome.
A vizinha, porém, destacando que sempre foi uma mulher discreta, disse não haver reparado na moça:
- Faço questão de não saber da vida alheia e o senhor devia fazer o mesmo.
Joaquim não tinha tempo nem tampouco paciência para explicar àquela dona o motivo de seus questionamentos. Com os olhos marejados e repetindo em altura quase inaudível o nome de Carminha, voltou à porta dianteira da casa e nela encostado, resvalou até o chão, enterrou a cabeça entre os joelhos e teve vontade de chorar compulsivamente, abandonando-se a pensamentos pungentes.
Sem mais, a moça abriu a porta, fazendo o noivo cair de costas, quase prostrado a seus pés. O rapaz levantou-se de qualquer jeito e beijou a moça, entre soluços. Carminha, numa tranqüilidade sobrenatural, com sorriso distraído, falou:
- Meu bem, você tomou chuva. A julgar pelo gosto dessas gotinhas em seu rosto, acho que é o primeiro caso de garoa salgada.
Abraçados, permaneceram quietos e silenciosos, na certeza de que as palavras eram desnecessárias ao momento. Contemplando o fenômeno dos chuviscos salgados, ali estavam, cúmplices, apaniguados, compartilhando, em segredo, o mistério daquela garoa. Joaquim sabia que, para Carminha, a chuva salgada seria muito mais inteligível que a realidade do rapaz, suas lágrimas, suor e inquietações. Melhor assim.