As palavras lhe tinham ficado atravessadas na garganta na noite anterior. O medo das consequências das frases impensadas o fez vacilar e, hesitante, calar resignado ante a tempestade de acusações. Deitou ao lado dela, submisso. Olhos baixos, fingiu dormir. Na madrugada, porém, tateou à procura de um papel para registrar seus sentimentos e se fazer entender.
Na falta de termos, copiou, com o máximo de fidedignidade que a memória lhe permitiu, um trecho do último romance que havia lido, o "O amor nos tempos do cólera". A ideia de usar as palavras alheias para falar do que o afligia se fundava mais na ilusão de ter um bode expiatório, personificado no autor da obra, que na exata correspondência entre a narrativa e a vida real.
Estava descrente, embora não amargo;cético, ainda que não a ponto de se tornar desagradável. Tinha, para si, a máxima "A desilusão se aproxima mais de uma postura realista que desistente". De fato, não havia desistido de tentar, mas, talvez, de tentar daquela forma.
Acostumava o coração enquanto deslizava a caneta entre os dedos, respirando a brisa que corria janela adentro, como quem fugia das fracas luzes da rua. Consolava-se no silêncio que ali só se ouvia às três da madrugada, quando os passos ao redor cessavam e a cidade dormia um sono angelical, que a todos vinha: feios e belos, bons e maus, pobres e ricos, amantes e desacreditados.
Em boa, não obstante apressada caligrafia, pôs no papel:
O mundo, querida, é assim. Não devemos contrariá-lo: "Acabavam de celebrar as bodas de ouro matrimoniais, e não sabiam viver um instante sequer um sem o outro, e o sabiam cada vez menos à medida que recrudescia a velhice. Nem ele nem ela podiam dizer se essa servidão recíproca se fundava no amor ou na comodidade, mas nunca se haviam feito a pergunta com a mão no peito, porque ambos tinham sempre preferido ignorar a resposta."
Quis, ainda, completar, dizendo que estava convicto de que muitos que encontram amores asfixiantes - era assim que costumava se referir às paixões arrebatadoras - terminam sem eles, casando-se com qualquer estabilidade, contraindo matrimônio com qualquer certeza. Bem assim, quis acrescentar que a imensa maioria escolhe seu destino como quem compra um apartamento ou troca de carro: avalia os valores no mercado, observa os quilômetros rodados, os metros quadrados, a localização... Uma pequeníssima parte faz outro caminho, entregando-se por completo aos mandos e desmandos cardíacos. Ainda os mais ousados correm riscos, sujeitos a toda sorte de surpresas que podem desmoronar, de forma sempre mais dolorosa, o castelo de sonhos.
Partia resoluto para o lado dos covardes. Sentava-se, agora, em par com os acomodados sem grandes remorsos ou crises existenciais, o que lhe parecia muito justo e humano.
Antes de despontarem os primeiros raios de sol, apressou-se em deixar o escrito em um lugar visível, não sem antes colocar em letras miúdas:
"Bem ou mal, nosso caminho é a felicidade."