sexta-feira, julho 02, 2010

cardinais




  
Era noite. Acordou num sobressalto, confuso com o que havia sonhado. Sonho ou pesadelo? Jamais tal lhe havia ocorrido. As idéias passavam-lhe apressadas na mente para, em seguida, retornarem com igual rapidez. Levantou-se na escuridão, bebeu água em grandes goladas e sentou-se, ainda no breu, para recordar o sonho.
Desde onde era capaz de se lembrar, o sol era escaldante, tinha o corpo banhado em suor e corria numa imensa estrada de terra e pobre vegetação.
Ao longe, avistava a casa na qual adentraria ao fim do percurso. Lá encontrou oito imensas e antigas fotografias de pessoas aparentemente cheias de dignidade. Abaixo das imagens, havia oito vasos com flores extremamente ressequidas, de aparência milenar. Abandonando os retratos, deparou-se com quatro molduras sem qualquer foto e, ao lado delas, um envelope. Abriu-o, retirando dali o bilhete donde se lia: "Ferir-te-ei , em teus vinte e seis anos de medo, com meus setenta e oito punhais. Se queres outra oportunidade de viver, vai e faze diferente de tudo que já fizeste".
Eis o sonho. Que poderia ter querido ele dizer? Cheio de números e mistério... Dizem que os sonhos precisam ser interpretados. Tudo que eles querem falar não sai das entrelinhas e o medo é mesmo entendê-los mal.
De numerologia não compreendia, mas desconfiava que o mais importante era usar de toda a sensibilidade de que sempre dispôs e dar serventia ao despertar repentino.
Sabia que os números tinham tantas atribuições no mundo e a que mais lhe inspirava simpatia era as relações que estabelecem eles entre as pessoas, os vínculos de comunicação que podem ser firmados através deles. Não lhe causava o mesmo contentamento pensar nos números como base para o conceito de idade ou para as estastísticas do IBGE. Sempre gostou foi de gente: estar com gente, ver gente, sentir gente.
Pensando, pensando... Apostar! Havia de ser isso. Tão logo amanhecesse, correria à primeira casa lotérica e tentaria a sorte. Jamais havia jogado antes e seria isso qualquer coisa de diferente na sua vida.
A espera pelo sol se alongou, pois era tempo de chuva. Definitivamente, decidiu-se por não mais esperar e foi realizar sua tarefa.
À casa lotérica, percebeu que tinha poucos números para a Mega Sena e pôs-se a insistir com o atendente do estabelecimento:
- Veja, meu sonho me disse estes números nos quais quero apostar. Não posso  utilizar apenas estes?
- Infelizmente, senhor. Não insista mais. Peço que se retire, está atrapalhando a fila, vê?
Voltou para casa sem esperanças, nenhuma outra idéia lhe ocorria. Fatigado pelo exercício de procurar a melhor saída, anotou os números num papel, guardou-o no bolso e voltou a dormir, esperando que o próximo sonho lhe trouxesse mais orientações.
O dia corria e mal sabia ele, em pleno sono, que nunca usaria tanto de sua sensibilidade como dali a alguns instantes. Ao acordar, saberia exatamente o que fazer com aqueles números e confirmaria a tese que sempre cultivou de que também eles, e não só as palavras, podem ter algo a revelar.

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