domingo, agosto 30, 2009

azougue

"Olhar colírico
Lirios plásticos do campo e do contracampo
Telástico CinemaScope teu sorriso, tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido"
(Caetano Veloso e Rogério Duprat)



Dois olhos, os dois olhos tímidos foram fortes o bastante para me arrancar de mim. Sem entender como poderia isso ter se dado, em tão pouco tempo, perderam eles a timidez e se encheram de uma coragem acre. Pura audácia eram eles afinal. Já tinham vida neles mesmos e não mais obedeciam teus racionais comandos, tornando-se ali como que meus.
Comigo, eram obedientes, executando, sem questionamentos, as ordens que de mim partiam. Mansos, não deixavam nada escapar, completamente subservientes, servis.
Eu, porém, nunca saberia o que deles fazer. Tinha-os e não os queria. Temia.
No desengano, perderam-se eles, embaraçados no caminho que trilharam ao me seguir.
Lançam, agora, os sinalizadores, em busca de qualquer resgate. Vencido o medo, não me demoro em ir-lhes ao encontro, embora desconfie da violência do momento.
Arrebate seremos. Guerra seremos. Força despudorosa é o que iremos ser.

quinta-feira, agosto 27, 2009

de presente

Envolvo teu presente em papel colorido. Junto, num embrulho cheio de cores, tudo que antes já mandei nos tons de cinza e preto de outrora. No pacote estão o que, de fato, para ti era e aquilo que apenas parcialmente era teu. Está o enredo riscado, rasgado e reescrito, além do diálogo mudo que se fez presente quando, ausentes tu e eu, cresceu o silêncio.
Vão, no mesmo volume, as palavras desmedidas e as milimetricamente pensadas, as perguntas, respostas, reperguntas e desrespostas. É tudo presente, não só porque está, de algum modo, no presente do indicativo, mas porque indica lembranças à sua maneira vividas, agora adornadas e transformadas em regalo.
O tempo presente é o que ofereço, pois. É este hoje, em todas as suas limitações, o que te envio. Se é verdade o carpe diem, na sua compreensão de que o presente, o agora, é, em si mesmo um presente, uma dádiva, está comigo toda a razão de querer embrulhá-lo num papel estampado.
Não deixaria jamais de mandar também algumas canções, e aqui estão elas, enlaçadas numa fita e postas no pacote que te preparo. Canções nem tristes, nem alegres, mas maduras, no ponto de serem degustadas. Acresci este pequeno feixe de melodias para que pudesse o pacote ganhar a leveza que delas é própria.
Ainda coloquei no embrulho a presença não sentida, as vozes ocultadas, as frases omitidas, os sorrisos não vistos. Não esqueci de colocar aqui também o mistério que já não assusta. Tampouco me olvidei do que restou incompreendido e do que, de tão evidente, buscou-se calar.
E, porque ainda há algum espaço, envio, ademais, a espera, este caquético e paciente exercício, sem deixar de remeter vinho, cachaça e muita embriaguez, enfim.
Pontual ou já tardio, aí está o presente, cheio de ontem e até, talvez, de amanhã. O embrulho que envio é carpe diem, é realidade, é certeza de que viver o presente, seja o momento ou o conteúdo do pacote, qualquer deles ou mesmo ambos, é boa escolha.

domingo, agosto 23, 2009

fusão



a vida congelada acerta os ponteiros da hora. agora, sem demora, derrete e se mete mundo afora, num ímpeto por ir embora. a mesma vida, escorreita, casta, desce vasta a ladeira, corajosa, se antes morosa, faz-se ligeira, na pressa pelo experimento. vívida, ganhou a vida alento na certeza de não mais congelar, de não mais sentir frio, de ver tudo virar rio, amores mil correndo pro mar.

quarta-feira, agosto 19, 2009

nem tudo é crer

Remeteu-me, desatentamente, uma promessa rota num bilhete mal feito. Com péssima caligrafia, em papel puído, enviou-me uma promessa morta antes mesmo de haver nascido. Feto morto a promessa, morta sem ter visto a luz do mundo.
Recebi aquelas palavras com coração frio, quase tão gélido quanto as carnes da promessa abortada. Fitando-a, não enxerguei vida, respiração não detectei. Logo, da minha frialdade, aflorou um pensamento discreto e tive pena das crianças que se vão tão cedo. Senti, com a pressa de quem lê uma notícia jornalística, que era injusto morrer sem ter vivido efetivamente.
Passaram-me, então, ligeiros na memória os ideais feministas, a descriminalização do aborto.
Se realmente estivesse eu diante de um jornal, tê-lo-ia fechado e abandonado-o a um canto da sala. A realidade, porém, era menos amena. Não estava diante de jornal algum, mas de uma promessa morta em um bilhete descuidado.
Diante do cadáver, resignei-me por velá-lo durante algumas horas. Na sua pequenez, tirou-me dos olhos um olhar piedoso com o qual cuidei por enterrar aquilo que morto estava.
De há muito, tinha eu as promessas como fetos abortados, expulsos das entranhas em virtude do temor. O medo da responsabilidade ou, no mais das vezes, o medo do novo é, sem dúvidas, letal e destrói, no seu âmago, tudo sobre a face da terra cuja existência não haja alcançado nove meses de gestação.

sábado, agosto 15, 2009

la ventana

Abrir portas, janelas, portões é tarefa boa.
Descer

rar trancas e abrir ferrolhos também. O esforço, porém, só é válido, e valido, quando a saída é para a rua. A porta para dentro de casa, a janela virada para o muro, não são porta nem janela, mas armário, que não serve para nada, e nada mesmo, além de amontoar. E olhe que não falo em amor toar, fazer versos e cantar amor. Não é isso. É amontoar, juntar entulho, sabe? Atravancar, colecionar inutilidades.
Juancito Calderón, menino rechonchudo, vizinho de janela (e não de porta) de Nina, não fazia cerimônia. Com seis anos, ninguém se ocupa com palavras eufêmicas ou censura e Juancito era da regra e não da exceção.
O pequeno Juan não tinha armários. Tudo nele era janelas. Sem constrangimento, atirava na cara de nina qualquer comentário que ouvia em casa a respeito da moça. Vez ou outra, dirigia-se a ela:
"Mi papá he dicho que eres mujer de la vida! La vida es tuya o tú eres de ella? Yo también quiero ser de la vida.", gritava-lhe janela afora.
Nina, com verdadeiro pudor, enrubescia. Ah! Juancito só tinha janelas.

quarta-feira, agosto 12, 2009

letras pérfidas

a palavra te pega
te acerta
te deita no chão de um golpe
um só golpe cego te faz morrer
perecer
bobo, entregas escudo e lança
te lanças no encanto e te perdes
não medes altura
não medes o medo, nem nada
e a palavra te fura
doida, cruel
e te jura
uma cura, a fartura
mas não há, não há céu.

mentira dela

terça-feira, agosto 11, 2009

ao público que parte, ao ator que se demora

Sério, passo cadenciado, atravessou a sala, xícara em riste, como uma arma pronta a disparar. Cada gole do mal preparado café era um tiro na boca, um gosto de morte. Via-se num emaranhado de pensamentos de imensa importância a seus olhos.
Ó modo mesquinho de enxergar a vida!
Dava voltas em torno da mesa e também em torno de si, já que seu movimento de translação e rotação tinha como centro ele mesmo, enquanto a cabeça girava, causando-lhe certa ânsia.
Largou a xícara, sentou-se ao sofá. Os olhos guardavam a expressão de imensa dor. A dor de um orgulho estraçalhado, estilhaços de orgulho pelo chão da casa.
Jamais tentaria juntar aqueles cacos. Agachar-se ante a derrota para colar-lhe os pedaços e conferir-lhe novo rosto era repugnante idéia, o cúmulo da humilhação, o cume da vergonha ferida. Não. Estava certo de que não se dobraria, ainda que manter ereta a espinha pudesse significar intenso sofrimento.
Ó impiedosa personagem!
Havia de recompor seu interior e tornar-lhe tão artificial quanto a própria cara, que nem de longe se mostrava confusa como sua alma. Enquanto houvesse espectadores, olhos, dentes, nariz, tudo sabia como se portar, como se fazer parecer inatingível.
Porque artificial, seu maior medo era que os outros o vissem desnudo, sem sua maquiagem, roteiro inconcluso. Tamanho era o esforço por se mostrar pleno e divinificado que pequenas derrotas cotidianas ganhavam ares de tragédias de dimensão mundial, tornavam-se catástrofes históricas.
O desespero invadia-o: que haveriam de pensar os espectadores de sua representação infinita? Assim, construia o que era com fundamento naquilo que os demais diziam a seu respeito.
Ó escravidão irrefreável!
Tão cedo não descobriria que havia se tornado platéia de si mesmo no seu monólogo narciso. Era roteirista, iluminador, diretor, ator solitário. A quem, pois, apeteceria ver-lhe representar? Todos já sabemos bem o fim de quem crê na própria ficção. O tema já não desperta interesse, de modo que o público sensato abandona as cadeiras e deixa vazio o teatro cheio de eco.

domingo, agosto 02, 2009

ensimesmar

Era em si mesma um mar, cheio de vida, de algas, de água e sal. Sal para salgar os dias, tirá-los da mesmice e fazê-los terem mais gosto e também mais gostar do mundo e das pessoas. Em si mesma(r) todo dia era seu ofício.
Quando estava consigo mesma, podia ser mar sem se preocupar em permitir aos outros a compreensão. Consigo, não precisava ser rasa e límpida, podia esconder mistérios, sereias, naufrágios e dúvidas. Por isso, gostava de estar assim, fechada nela mesma, e, desse modo, sentir-se grande, sem fim. Sentia-se também fluida e capaz de a qualquer compartimento se adaptar, ganhando-lhe a forma, ainda que sempre transbordando-o por ali não caber na sua dimensão imensurável.
Ensimesmar tornou-se, então, uma droga, vício diário, porém secreto. Atrás da porta, longe de quem quer que fosse, virava mar e inundava de pensamentos largos o ambiente, banhava-se nas suas próprias águas, lavando o rosto para sair à rua com novo ânimo, revigorada em si.