segunda-feira, abril 25, 2011

samba em prosa




Não fossem as incontáveis coincidências terem acontecido conosco, não haveríamos de crer, custaríamos a aceitar a possibilidade de havermos perdido a cadência habitual das nossas vidas em razão de uma enxurrada de sentimentos repentina a revirar nosso íntimo de maneira tal.
Decerto tenho caído na tua graça, naturalmente, como quem cai no samba e se deixa levar noite adentro. Tocando, tu me tocas o coração, fazes música em mim e, tocando-me a mão, tu me convidas para dançar. 
Longe da razão, encanto-me quando cantas despretensioso, dedilhando, olhando-me malandro, sinuoso como a melodia. No teu ritmo, escorregam leves os meus pensamentos, dançarinos perseguem a tua música, envolvidos no teu som, deslizando até ganharem o infinito.
Começamos de Chico compartilhando a Homenagem ao malandro, sem que pudéssemos então prever que, em verdade, homenageávamos todas as compatibilidades que assomavam diante de nós, tornando tão bela essa nova história que agora nos empenhamos em musicar.
Não quero desafinar, não posso descuidar do compasso, não vou estragar a canção que temos acertado com tanto esmero. Cada nota e o menos perceptível acorde tenho guardado, posto no pentagrama, cuidado de cada pequeno grama, de toda minúscula gota do teu sorriso, do teu barulho bom.

sexta-feira, março 11, 2011

um pedaço seu

Deixe um pedaço seu
num recado, desenho, num retrato
ou eu
eu nem sei.
Deixe um pedaço seu
numa frase, num abraço, fraise, que me cale
e eu
eu já sei.




Eu dançaria, por horas a fio, no diálogo quase nervoso, asfixiante como o ar que é puro demais. Mais uma vez, sem rodeios ou disfarce, eu beberia de você, com uma sede leve e constante, pousando em ti meu olhar ansioso, como quem tivesse medo de ver a fonte se esgotar. 
Ainda novamente eu escutaria uma música marcante, deparando-me com você, reflexo meu, sentindo igual, dividindo comigo o que tínhamos de mais precioso: nossas ideias secretas, pensamentos íntimos e sonhos, tudo espécies da loucura que nos assola, humanos que somos, eternos que somos.
Eu te veria transbordar mais, derramando tuas águas no papel, criando formas, traduzindo sentimentos, traçando irrealidades a ponto de fazê-las concretas em preto e branco. Eu te contemplaria como o mar de águas violentas e sem fim, surpreendendo-me com a calma que nasce do caos, que tuas mãos reduziriam a contornos negros. Eu ouviria, com contentamento, tua concretude inventada, teus planos mitológicos, tuas explicações do mundo sem pensar em discordar e já discordando sem pensar.
Eu esperaria um pedaço seu, deixando um meu, sabendo que mais à frente nos encontraremos. Por estradas diversas, chegaremos, fatalmente, a um lugar em comum para o próximo abraço apertado.

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

de passagem

música para a leitura








Chegamos na cidade pelas ruas pacatas do bairro da Novidade com suas casinhas simples, de muros baixos. Vimos crianças a brincar, famílias inteiras nas calçadas durante as tardes dominicais e, à noite, os clássicos namoros ao portão com furtivos beijos atrapalhados. Permanecemos ali por dias, quando nos propusemos a seguir. 
Adiante, adentramos o bairro da Amizade, onde experimentamos a sensação de precisarmos um do outro. No parque do bairro, de igual nome, sentamo-nos para observar os transeuntes cheios de cumplicidade e afeto, amigos com tudo o que a amizade oferece. Era-nos um convite. Aceitamos.
A caminho do próximo bairro que visitaríamos - tínhamos em mente chegarmos ao bairro da Aventura -, rumamos pela estrada que estava às margens do Lago da Conquista e o efeito foi instantâneo. Naquele momento, no ímpeto de uma troca de olhares decisiva e decidida, partimos em direção ao bairro do Amor com pressa, sem que precisássemos dizer qualquer coisa.
Era um bairro absolutamente lindo, de muitas cores, embora de patente suavidade. Ali contemplamos a confusão de amadores, própria dos novos amantes, com nosso sorriso, a um só tempo, de compaixão e identificação.
Ruas alegres, cujos nomes eram títulos de canções: Rua Último Romance, Rua Vitrines, Desafinado, Belle de Jour... I Wish You Were Here, Luz e Mistério, Better Together, Eleanor Rigby ou Calle Un Lugar en Tu Almohada, todas organizadas em pequenos distritos, segundo os respectivos intérpretes. Ao entrarmos em cada uma delas, automaticamente se iniciava a canção e, nos cruzamentos e esquinas, tínhamos o silêncio dos apaixonados. Árvores, brisa fresca e cheiro de flores por toda parte, era assim o bairro do Amor.
Por outro lado, havia o grave inconveniente de se tratar de um bairro demasiado confuso, com ruas tortuosas, algumas de uma estreiteza admirável, outras absurdamente largas, praticamente impossibilitando-se a travessia. Cruzavam-se entre si de forma incompreensível, num emaranhado assombroso e desafiante. O perigo nos espreitava e perder-se era quase certo. 
No vislumbre doentio que aquele bairro nos causava, recordo-me da derradeira ocasião em que estivemos juntos para nunca mais, no exato ponto onde se cruzavam a Rua Samba do Grande Amor e a Rua Fotos na Estante. Desde então, foi-me impossível saber seu destino, fato este que, de aparentemente trágico, mostrou-se providencial. Segui em frente até que finalmente encontrei um sobrado à Rua Novo Amor que, arrebatada, aluguei. Radiquei-me no local com a sorte de a janela da frente ter uma incrível vista.
Quanto a você, se de passagem, não hesite em entrar para tomarmos um chá ou simplesmente ouvirmos a canção que vem da rua, pois é verdade que está tudo novo como na música.

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

olhos de strike



Naquele dia, punha em ordem meus armários, papéis, livros, revistas e lixos em geral. Surpreendia-me com os achados como quem descobria monumentos paleozóicos, documentos históricos. 
Eram folhas amareladas, fotos com rostos quase esquecidos, grafias insondáveis, de autores, por pouco, igualmente indecifráveis. O mais doloroso, no entanto, não era a antiguidade de todas aquelas velharias, mas saber que eram minhas. Minhas recordações, minhas pequenas memórias, de um tempo que, dia desses foi ontem e agora se mostrava passado remoto. E porque tudo aquilo se via tão antigo, tão gasto, tão pó, vi que também eu havia me tornado vítima dos anos. Achava-me, transcorrida uma vida de tantas horas, velha ou simplesmente uma sombra decadente do que, um dia, tinha sido.
Na juventude, não podia me considerar a mais bela, embora guardasse no semblante a certeza de uma graça bem elogiada. Da mesma forma, não obstante carecesse de genialidade, jamais me faltou a perspicácia que um à época namorado detectou nos meus olhos, para ele considerados como duas sagazes bolas escuras, inquietas e rígidas. "Olhos de strike", como costumava dizer.
Naquela ocasião, achei brega, piegas, feio, enfim. Hoje, porém, agradar-me-ia ouvi-lo outra vez. Os tais "olhos de strike", que simplesmente derrubam aquilo que esteja adiante, quisera ainda tê-los, pois a própria sequência ininterrupta dos anos se encarregou de apagá-los, retirando-lhes a densidade e a força.
A idade dói, meus anos pesam. Cá estou, idosa e caquética, com o fardo da vida inteira, mas sinceramente realizada em carregá-lo, satisfeita com toda a alegria e toda a tristeza passadas, com tudo que ganhei sabendo que perderia - e, de fato, perdi. Afinal, assim haveria, feliz e irremediavelmente, de ser. 

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

opção dois

- Nesse caso, nós só temos duas opções: ou ela é louca, ou você está mentindo.
- Eu sempre prefiro a segunda opção. 


Então li um trecho de Simone de Beauvoir, porque achei adequado e também por sentir que eu precisava dizer-lhe alguma coisa. Era duro ver a realidade diante dos olhos, sempre tão descarada, ao passo que outros insistem em manter a cegueira à plena luz:

"Lembra-se quando fazíamos troça das mulheres que se deixam sacrificar? Continuo a pensar, apesar de tudo,  que não sou feita da massa com que se constroem as vítimas."

Foi-lhe um tapa na cara, talvez, pois me olhava pálida. Era preciso chocá-la, porém, eu sabia. Sempre soube tantas coisas e tantas coisas se tornavam descobertas, cálidas novidades, azedas e delicadas, que, faceiras, exibiam-se a quem quisesse admirá-las. Ah, sempre soubemos, eu, você e Simone de Beauvoir que só há dois tipos de mulheres: as enganadas que um dia vêem e as enganadas que cegas querem permanecer.

quinta-feira, janeiro 20, 2011

Ya pasó
Ya he dejado que se empañe
La ilusión de que vivir es indoloro
Que raro que seas tú
Quien me acompañe, soledad,
A mí, que nunca supe bien
Como estar solo
Jorge Drexler




Sentei-me e pedi café acompanhado dos biscoitos chamados "biscoitinhos ingleses", ainda que eu não corcordasse com o nome deles. Comi e bebi pensativa, esquivando-me corajosamente dos olhares, fossem piedosos, interessados ou simplesmente curiosos. Categoricamente, ignorei todos, detida na minha xícara, que se mostrava silenciosa e sóbria como a mulher que queria me tornar.
Havia assumido, com paixão, a condição que me era de direito: a de ser só. Fi-lo sem lamentos nem dor, agarrada à certeza de que nisso residia a plenitude e a serenidade sonhada por tantos, mas abraçada apenas pelos fortes, que já não lutam, cega e estupidamente, contra a solidão.
Era preciso amar a si na medida exata. Nem mais, nem menos. A receita era mais perfeita que a dos biscoitinhos ingleses e eu estava disposta a prová-la.
Não bastava o amor próprio suficiente para se suportar. Fazia-se imprescindível, antes, gostar de estar consigo, mas na proporção adequada para se evitar um alheamento do mundo ou uma migração ao universo dos espelhos, onde tudo que se vê é reflexo e o reflexo do reflexo até que o ser se torna apenas um reflexo doente e delirante.
Equilíbrio era a palavra que combinava imensamente com aquele café e casava com os biscoitos. Tudo isso, por fim, afrontava os olhares, desafiando aqueles que não admitem a solidão menos por ela mesma que por jamais haverem tido a ousadia de experimentá-la.
Pedi outro café, pois melhor companhia eu nunca havia encontrado. Alinhei os cabelos, olhando-me em um dos espelhos que ali estavam dispostos por toda parte para causar a impressão de maior espaço. Também eu me senti maior e a rua, assim como os tipos apressados na calçada, já pareciam tão pequenos.

quarta-feira, janeiro 12, 2011

conversa de mãos dadas

- E então? O que eu te disse naquela ocasião?
- Muitas coisas... Tantas que seria imposível dizê-las todas.
-Mas eu não falei contigo por dias.
- Você dizia sem falar.


Há momentos em que as palavras atrapalham. Talvez por isso, naquela altura da vida, já se faziam elas desnecessárias e até incovenientes. Os olhos míopes enxergavam muito além do que podia a linguagem descrever e os rostos gastos pelo tempo faziam-se expressivos como nenhuma frase. Era a convivência de uma vida conjunta e sólida, era o amor.
As inconstâncias dela não o surpreendiam, ao passo que as manias de velho, que ele demonstrava desde seus vinte e alguns anos, tampouco eram novidades que a encontrassem desprevinida. Adaptaram-se um ao outro com a incrível desenvoltura de quem confia no amor não obstante os percalços, tendo-o como decorrência direta da emoção e da razão, numa mesma medida: perfeitamente bela e matematicamente precisa, por não serem a estética e o cálculo excludentes, mas, antes, complementares.
O equilíbrio pleno não era, por certo, absoluto, como não poderia ser, imperfeitas que são todas as coisas. No entanto, foi nas imperfeições e confiança mútuas que encontraram o sentido de tentarem a felicidade, encoberta por falhas humanas e defeitos dos quais nenhum mortal escapa.
Naquele dia, como em tantos outros diálogos de tato em que as mãos enlaçadas conversavam entre si enquanto os olhos de ambos se conservavam distantes, perdidos na beleza do amor ido e do vindouro, ela ouviu, sem que ele precisasse dizer, o quanto era grato por tudo, enquanto as mãos dela lhe falaram que, com ele, fora e seria a mulher mais feliz.
A conversa de mãos ecoava no horizonte, preenchia os corações do casal. Estavam tão convictos do vivido que nada lhes parecia tão certo quanto tudo que lhes havia ocorrido, incluso os erros que os punham um diante do outro, frágeis e desnudos. Mudos.