segunda-feira, julho 26, 2010

comunicação oficial

Sentir os sentimentos de todos os dias tem das suas complicações. Já não se sabe o que é rotina do trabalho ou rotina da paixão... Uma vez me contaram de uma moça que, imaginem, levou  uma carta de amor à publicação em Diário Oficial. Por equívoco, entre a escrita de documento público e a elaboração de uma declaração, digamos, informal, acabou por misturar os textos e desembocou no vexame de haver confundido os papéis de funcionária pública e mulher apaixonada.


Se acordares bem cedo, não levantes da cama de imediato. Gasta uns cinco a sete minutos de olhos preguiçosos, na indecisão por acordar ou não. Levanta, então, desejando-me, sem que eu desperte, "bom dia", como quem queria desejar "boa noite" para prolongar-me o sono. 
Toma teu banho, escova os dentes e bebe aquele teu café forte diário. Vai ao trabalho, esperando que, tão logo eu acorde, pense que gostaria que teu dia fosse dos mais bonitos de julho. Inicia tuas atividades e telefonemas. Entre um pensamento e outro, que te corte a concentração uma imagem minha, um cheiro, um toque te ganhe a memória. 
Lê mais, escreve um outro bocado, puxa assunto com algum colega para descontrair o ambiente, mas, uma vez ainda, lembra de mim, uma piada contada ou uma história qualquer que te faça rir. Em contenção, pensa: "É esquisita esta vontade boba de rir". Sorri, mesmo assim, ainda que desconcertado.
Almoça, retoma as atividades com o mesmo ritmo, com as mesmas interrupções por pensamentos outros, porém igualmente a mim relativos, até que a tarde finde e tomes teu rumo de volta. 
No caminho, julga-te abobalhado, ridículo, crê que és fútil, talvez, mas sem perder o sorriso, sem cogitar a possibilidade de que o quadro mude. 
Cantarola um refrão antes de abrir a porta, desabotoando a camisa, sentindo-te em casa, no escuro da sala, como fosse o sol ainda nascendo, revigorando-te, preparando-te para o que, a ti, parecerá amanhecer.
Encontra-me em algum canto da casa com uma ânsia meio velada de matar as saudades e, da maneira mais suave, deseja-me "boa noite" como quem quer desejar "bom dia" para tornar lentas nossas horas conjuntas, nosso dia que ali iniciará.

sábado, julho 17, 2010

stuff II

Há textos que precisam de um complemento, feito fossem escritos em uma língua morta, desconhecida por quase a totalidade das pessoas. Stuff, o primeiro, de tão despretencioso, pareceu mais superficial do que se esperava. Uma explicação é necessária, antes que tudo que ele tinha a oferecer se resuma a uma descrição inútil de uma bolsa feminina, lotada de futilidades e prioridades absurdas.


- Você precisa se permitir, sabe?
- Ou permitir que os outros se permitam.
- É... Ou permitir a permissão aos outros...
- ...
- Mas que mania essa de se agarrar ao mundo e carregá-lo nas costas. Você não tem que se amarrar a tudo que passa a menos de dois metros de distância e nunca mais largar.
- Como um ímã, não é?
- Exato.
- Mas não é isso uma tendência nossa?
- A de ser ímã? Não. Bom, não sei. Veja, são mesmo indispensáveis essas três bolinhas de gude? Nostálgicas, eu sei, mas precisamente por isso! Batom vermelho? Há quanto tempo que não usa? A folha de gengibre... Bem, vá lá, mas todo o resto... A fita dupla-face? Absurdo, tudo absurdo! Entende?
- Penso que sim.
- Está na hora de mostrar a outra face da fita dupla, a outra personalidade. Ter uma personalidade dupla (-face) tem disso.
- Mas é que o outro lado também é adesivo.

sexta-feira, julho 16, 2010

stuff

Bem de manhã
quero uma filosofia vã
vã filosofia
para começar o dia
e para, enfim, também
terminá-lo bem.




Acordou cedo, colocou Clarice Lispector na bolsa, na vontade de uma enxurrada de fluxos de consciência ao longo daquele dia cheio de hábito, repetitivo, de rotina abafada.
Separou um papel e uma caneta para qualquer urgência, na certeza de que tê-los à disposição era como um kit para sobrevivência em uma ilha deserta. "Pois é, nunca se sabe."
Um chocolate para adoçar o amargo, um sachê de sal. "Engraçado... Ninguém desconfia o quão útil isso pode ser e, no entanto, finda que é."
Um guardanapo, um grampo de cabelos."De repente, surge uma porta, um cofre, não?"
Uma vela, um esmalte, junto com um batom de cor bem análoga: vermelho-sangue. No mesmo amontoado, uma anágua, um dicionário, um vidro pequeno de perfume. "Às vezes, este aroma me põe tonta. Será normal?"
Um potinho de azul-de-metileno, uma folha seca de gengibre, uma agulha de crochê. "Se me falta o que fazer... Tempo não é para que se perca."
Um barbante, um prego e uma fita adesiva perto do fim. "Prefiro a dupla-face... Parece mais comigo, digo, assim, em termos de personalidade."
Um suvenir que sua tia lhe trouxe do Rio de Janeiro, três bolinhas de gude. "São nostálgicas de tão verdes (ou serão azuis?)."
Já na soleira da porta, pronta para sair de casa, algo a impede: "Ah! E as chaves? Sabia que estava a esquecer alguma coisa!"

sexta-feira, julho 02, 2010

cardinais




  
Era noite. Acordou num sobressalto, confuso com o que havia sonhado. Sonho ou pesadelo? Jamais tal lhe havia ocorrido. As idéias passavam-lhe apressadas na mente para, em seguida, retornarem com igual rapidez. Levantou-se na escuridão, bebeu água em grandes goladas e sentou-se, ainda no breu, para recordar o sonho.
Desde onde era capaz de se lembrar, o sol era escaldante, tinha o corpo banhado em suor e corria numa imensa estrada de terra e pobre vegetação.
Ao longe, avistava a casa na qual adentraria ao fim do percurso. Lá encontrou oito imensas e antigas fotografias de pessoas aparentemente cheias de dignidade. Abaixo das imagens, havia oito vasos com flores extremamente ressequidas, de aparência milenar. Abandonando os retratos, deparou-se com quatro molduras sem qualquer foto e, ao lado delas, um envelope. Abriu-o, retirando dali o bilhete donde se lia: "Ferir-te-ei , em teus vinte e seis anos de medo, com meus setenta e oito punhais. Se queres outra oportunidade de viver, vai e faze diferente de tudo que já fizeste".
Eis o sonho. Que poderia ter querido ele dizer? Cheio de números e mistério... Dizem que os sonhos precisam ser interpretados. Tudo que eles querem falar não sai das entrelinhas e o medo é mesmo entendê-los mal.
De numerologia não compreendia, mas desconfiava que o mais importante era usar de toda a sensibilidade de que sempre dispôs e dar serventia ao despertar repentino.
Sabia que os números tinham tantas atribuições no mundo e a que mais lhe inspirava simpatia era as relações que estabelecem eles entre as pessoas, os vínculos de comunicação que podem ser firmados através deles. Não lhe causava o mesmo contentamento pensar nos números como base para o conceito de idade ou para as estastísticas do IBGE. Sempre gostou foi de gente: estar com gente, ver gente, sentir gente.
Pensando, pensando... Apostar! Havia de ser isso. Tão logo amanhecesse, correria à primeira casa lotérica e tentaria a sorte. Jamais havia jogado antes e seria isso qualquer coisa de diferente na sua vida.
A espera pelo sol se alongou, pois era tempo de chuva. Definitivamente, decidiu-se por não mais esperar e foi realizar sua tarefa.
À casa lotérica, percebeu que tinha poucos números para a Mega Sena e pôs-se a insistir com o atendente do estabelecimento:
- Veja, meu sonho me disse estes números nos quais quero apostar. Não posso  utilizar apenas estes?
- Infelizmente, senhor. Não insista mais. Peço que se retire, está atrapalhando a fila, vê?
Voltou para casa sem esperanças, nenhuma outra idéia lhe ocorria. Fatigado pelo exercício de procurar a melhor saída, anotou os números num papel, guardou-o no bolso e voltou a dormir, esperando que o próximo sonho lhe trouxesse mais orientações.
O dia corria e mal sabia ele, em pleno sono, que nunca usaria tanto de sua sensibilidade como dali a alguns instantes. Ao acordar, saberia exatamente o que fazer com aqueles números e confirmaria a tese que sempre cultivou de que também eles, e não só as palavras, podem ter algo a revelar.