terça-feira, dezembro 15, 2009

paciência

É verdade que eu imaginava a vista mais bela.
É verdade que os degraus foram um desafio para meu fôlego.
É verdade que o plano era apreciar a vista e descer em seguida.
Mas acontece que eu não vou descer, sabe?
Vou ficar morando por aqui, comendo vento, bebendo luz.
É verdade que minhas verdades eram todas mentiras. Paciência...





Marina nunca foi mulher de medo nem de poucas razões. Era cheia de verdades, de certezas. Gostava de muitas explicações e de doce de abóbora. Gostava de brigar, de brigar com muitos argumentos, fazendo das palavras verdadeiras armas, punhais afiados, coisas assim. Marina, menina de muitas encrencas na rua com as outras crianças, virou Marina, mulher de confusões românticas e inconformismos com atendentes de telemarketing. Era a Marina"pavio curto" dos íntimos.
Tolerância não era com Marina. Em definitivo, ela desconhecia o significado disso. Cansada do mundo, cheia da televisão, das notícias, dos bancos com suas filas, das lojas e dos produtos em liquidação, Marina  quis olhar de cima a vida para ter a certeza de que tudo era mesmo tão maçante: "Droga. Errei o caminho. Errei a roupa. Errei a receita do bolo".
Marina subiu uma escada alta, mentalizando que "paciência é a ciência da paz" e decidiu não mais descer. Reza a lenda que Marina construiu sua vida do alto daquela escada. Casou com um paraquedista que desabou por ali, teve três filhos - Flora, Bernardo e Bento -, esqueceu das brigas e até do vício em doce de abóbora.
Não era o Brejo da Cruz onde há quem diga que se vivia de luz, nem nada do gênero. Era só uma escada alta, cuja construção mobilizou três quintos dos homens que construíram Brasília. O fato é que Marina se sentia completamente livre das verdades e já comia vento como ninguém, tinha deliciosas receitas cujo ingrediente principal era o vento mesmo e vivia bem feliz com a tal ciência da paz.

terça-feira, dezembro 08, 2009

e tantos homônimos

Em uma tarde de feriado é bem possível perceber que o mundo está repleto de homônimos. Iguais no nome e diferentes em todo o resto. Às vezes, apenas o som é o mesmo, noutras vezes inclusive a grafia é idêntica e, naturalmente, pode isto causar muita confusão. Uma "casa", simples moradia, pode virar um "Casa com ele amanhã e vai morar no Chile! Eu dou todo o apoio". Bem assim, as pessoas podem ter o mesmo nome e, no entanto, não guardarem entre si qualquer semelhança. Foi esta última espécie de homônimo a que me marcou.
Pensando a este respeito, também me ocorreu que os fatos, os esta tarde vividos, poderiam ter muitos homônimos se fossem eles transformados, cada um, em apenas uma palavra.
O seu abraço quente, sob o sol escaldante, poderia ser chamado aconchego. Sua conversa solta, ganhando o vento e a rua, descendo a janela, dançando no ar, poderia ter o nome liberdade. Os mapas e fotos que me mostrastes, de uma época que não foi presenciada por qualquer pessoa a este tempo vivente, enquanto ouvíamos seus estranhos rocks e alguma música clássica, poderiam ser denominados pedaços de novidade ou fragmentos de incompreensão. Sua surpresa ao descobrir uma pequeníssima casa de um inseto qualquer, feita de barro, seu modo de desmanchá-la nos dedos e de atribuir ao desconhecido animal o título de engenheiro, eu chamaria encantamento. E sua barba me arranhando o rosto e pescoço, em uma despedida apressada não teria como homônimo a aspereza, jamais, mas a delicadeza de uma saudade que se mata aos poucos.
Este é o mundo dos homônimos, dos vocábulos idênticos. Um mundo que me faz ter a certeza de que ninguém que tenha teu nome conseguiria a ti se igualar.


quinta-feira, dezembro 03, 2009

pois ia

Parecia uma heresia
falar assim da poesia
que outrora o coração me ocupou
Tratar com desdém
a poesia com quem
gastei tardes, palavras e amor.

À poesia dar adeus
sempre foi coisa que aos meus
era estranha ao meu proceder
Quem bem me conhecia
já sabia que se eu ia
eu voltava e esperava, à mercê.

Partir me era um tanto infazível
um tanto indizível
e outros neologismos
outros surrealismos
ou um absurdo qualquer
absurdo de quem quer
com puro pó construir
um lugar onde ir,
um recanto
mas nem tanto
com poesia se constrói
e é assim que sói,
que costuma acontecer
de a poesia correr
e já, ao longe, acenar
E dizer que já não calha
que não há razão que valha
que não adianta esperar
Que irá com outro norte
procurar tentar a sorte
aventurar um novo lar.

Eis que a poesia
era pó que ia, pois
e ia, sim, é certo. Ia
Tanto ia que se foi.



Com gratidão, a quem soube separar, aos meus olhos, as sílabas da palavra "poesia".

terça-feira, dezembro 01, 2009

em resposta, o escritor

Não sei escrever cartas. Tenho dificuldade em me dirigir a alguém em específico. Meu dom se restringe a falar a um grupo de pessoas indeterminado, cujas faces não tenho eu de encarar, cujos olhares não preciso conhecer. Não dedique, pois, muito de sua atenção a esta correspondência, que, possivelmente, parecer-lhe-á mal feita.
Causaram-me espanto suas palavras, agrestes, embora vestidas em um traje de eufemismo. Apesar de duras, parecem-me verdadeiramente transparentes, quero dizer, enxergo nelas bastante sinceridade. Você toda me pareceu um poço de sinceridade e não é isto um dos galanteios baratos que tanto vê no livro que chama de "grande monstro de papel branco", a menos, é claro, que deseje figurar naquelas páginas. Da minha parte, objeção não haveria.
Pelas críticas, as construtivas e aquelas em que desponta um sinal de desprezo - e que nem por isso deixam de ser bem didáticas -, agradeço. Não pretendo observá-las, mesmo porque todo o público que remanesce, ainda que sem a sua aprovação, é o que me alimenta. Não estou me referindo à satisfação profissional, felicidade, nada disso. Falo de comida à mesa, uísques diários e alguns pequenos luxos que a venda de mim mesmo me proporciona.
Do pouco ou nada que conheço a seu respeito, posso inferir que a essa função alimentar dos "romances autobiográficos em múltiplos contextos" você chamaria prostituição intelectual. Pois bem, quem nunca vendeu um pouco de si?
Por favor, queira não levar a mal minha resposta, não tomá-la por grosseira. Entenda a forma de sobrevivência que para mim erigi como a melhor e não esqueça de comigo colaborar: à sua amiga, avise que, às sextas, pode ela me encontrar, via de regra, desacompanhado, naquele bar à Rua Nova. Imagino que sua ajuda me renderá ao menos mais um capítulo e alguns mimos, merecidos por um bom vendedor da própria vida.