É verdade que eu imaginava a vista mais bela.
É verdade que os degraus foram um desafio para meu fôlego.
É verdade que o plano era apreciar a vista e descer em seguida.
Mas acontece que eu não vou descer, sabe?
Vou ficar morando por aqui, comendo vento, bebendo luz.
É verdade que minhas verdades eram todas mentiras. Paciência...
Marina nunca foi mulher de medo nem de poucas razões. Era cheia de verdades, de certezas. Gostava de muitas explicações e de doce de abóbora. Gostava de brigar, de brigar com muitos argumentos, fazendo das palavras verdadeiras armas, punhais afiados, coisas assim. Marina, menina de muitas encrencas na rua com as outras crianças, virou Marina, mulher de confusões românticas e inconformismos com atendentes de telemarketing. Era a Marina"pavio curto" dos íntimos.
Tolerância não era com Marina. Em definitivo, ela desconhecia o significado disso. Cansada do mundo, cheia da televisão, das notícias, dos bancos com suas filas, das lojas e dos produtos em liquidação, Marina quis olhar de cima a vida para ter a certeza de que tudo era mesmo tão maçante: "Droga. Errei o caminho. Errei a roupa. Errei a receita do bolo".
Marina subiu uma escada alta, mentalizando que "paciência é a ciência da paz" e decidiu não mais descer. Reza a lenda que Marina construiu sua vida do alto daquela escada. Casou com um paraquedista que desabou por ali, teve três filhos - Flora, Bernardo e Bento -, esqueceu das brigas e até do vício em doce de abóbora.
Não era o Brejo da Cruz onde há quem diga que se vivia de luz, nem nada do gênero. Era só uma escada alta, cuja construção mobilizou três quintos dos homens que construíram Brasília. O fato é que Marina se sentia completamente livre das verdades e já comia vento como ninguém, tinha deliciosas receitas cujo ingrediente principal era o vento mesmo e vivia bem feliz com a tal ciência da paz.