quinta-feira, novembro 26, 2009

uma carta ao escritor

Esse papo já tá qualquer coisa
Você já tá pra lá de Marrakech
(Caetano Veloso)





Quero dizer-lhe que tenho acompanhado suas obras, ainda que esporadicamente. Tenho este último livro seu à minha cabeceira sabe lá Deus o motivo, com o perdão da sinceridade. De início, nas primeiras páginas, pareceu-me bastante interessante. Segui na leitura, tentando desvendar o rumo da história, conhecer os personagens, descobrir sua mensagem. De folha em folha, detinha-me, concentrando-me nas suas palavras, num esforço por buscar um suposto sentido oculto, sentido que quem escreve costuma camuflar.
Gostei das ilustrações e destas páginas absurdamente brancas, ofuscantes, cheirando a livro novo. A formatação é boa, a diagramação é de bom gosto. Formalmente bom, em síntese.
Passando ao conteúdo da obra, acredito que o senhor foi feliz no mote que escolheu. No que se refere aos capítulos, de forma específica, nenhum se compara ao que menciona a tentativa de afogamento do personagem principal que, arrependendo-se, descobriu, às portas da morte, que sabia nadar. Sua narrativa foi fantástica ao ponto de, ao lê-la, haver me sentido afogada no sofá de casa.
Ocorre que, aqui acolá, surgiram novas figuras tão repentinamente que, nem em meio à falta de sentido que é própria de seus escritos, os últimos capítulos se encaixam. Estão eles desconexos, cheios de longos abismos. Nexo é o que falta à obra, que, do meio para o fim, desanda, se me permite dizer.
Vi uma entrevista que o senhor deu ao canal 12 e recordo que mencionou o caráter autobiográfico da sua obra. Sei que sua idéia de “romance autobiográfico em múltiplos contextos” pareceu inovadora à crítica e, segundo ouvi falar, fez o público invadir as lojas em busca de suas obras, querendo seguir-lhe a vida, como um reality show das elites intelectuais. Eu temo por sua intimidade, se é que o senhor ainda a tem, e repugno esses modismos. Diante disso, passei por um tempo de abstinência do seu grande monstro de papel branco, esse seu romance de letras miúdas e muitas páginas.
Aproveito a ocasião para mencionar a opinião de uma grande amiga, seguidora fiel de seu trabalho. Para ela, insistir na autobiografia é contraproducente, melhores seriam aqueles contos policiais de alguns anos atrás. O romance de sua própria vida, com personagens infindáveis, fatigou também essa minha amiga, a qual voltaria a lê-lo se o senhor a permitisse participar da história (pediu-me que eu desse ensejo a um eventual convite).
No mais, faço minhas as palavras do Veloso “esse papo já ta qualquer coisa. Você já tá pra lá de Marrakech”. Ou o senhor inova na vida, ou inova na obra. Sendo um o outro e o outro o um, é chegada a hora de mudar de profissão.

segunda-feira, novembro 23, 2009

ao leo

Leo, ao léu,
olhou pro céu.
Na rua,
encarou a lua nua
e se riu.
Se riu do que viu.

Era a lua um "u".
Cadê o Cruzeiro do Sul?
Será que é pra lá?
Sei lá!
Sou mais a lua, ah...
Mas qual lua cheia!
Leo gosta é dela meia.

O menino enchia o olho de satélite, contemplando o céu. A mãe dizia que era "um aluado! Se pode uma coisa dessas, demorar assim no sereno! Termina doente com essa teimosia de ficar de papo pro ar no meio da rua... Ô, João, manda esse menino entrar!".
Leo, ao léu, nem se importava. Já assim, de pequeno, sabia que a lua minguante era toda matemática. "A tal da para, para, parábola". A lua, imaginava Leo, era uma parábola. "Começa em cima e vai descendo até o... vértice, depois sobe outra vez. O professor disse que a pará... bola era equação de 2º grau". Leo, portanto, não estudaria o assunto agora, de modo que entender a lua em números era coisa para o futuro.
Leo, ao léu como estava, não tinha pressa em saber tanto do mundo. De cara para a lua, lembrava o dizer da avó de que tudo que sobe desce, que as coisas sempre voltam para onde saíram. E não era verdade? Se ele jogava uma bola para cima, ela descia. Uma pedra também. Com a parábola era igual!
Esse Leo, ao léu, de olho para cima e imaginação no infinito, descobrindo segredos que quase nenhum adulto consegue compreender...

terça-feira, novembro 17, 2009

licença poética

Não me recordo, com exatidão, da primeira vez em que ouvi falar em licença poética. Acredito que, à ocasião, comentava-se sobre Chico Buarque, talvez sobre Caetano Veloso, ou mais precisamente sobre uma letra que fosse da autoria de um deles na qual, usando de certa atenção, era possível detectar um erro gramatical.
Gostei da expressão e, após me haver ela chegado aos ouvidos em outras oportunidades, dediquei-me a procurar situações para empregá-la. Dia desses, porém, percebi que, muito embora quando do meu primeiro contato com a idéia de licença poética tenha me parecido seu sentido plenamente intuitivo, a acepção da terminologia já não se me afigurava tão óbvia. Antes se mostrava muito evidente que licença poética era uma espécie de discurso dos literatos: "Dá licença que, em literatura, a gente pode falar o que quiser e como quiser". Podia ser também um tipo de documento concedido pela prefeitura em que se autoriza a liberdade de tudo dizer, ainda que sem obediência a uma forma prévia. De toda sorte, o significado principal estava na cara.
Num dia de praticidade, porém, encarei de frente e com outros olhos a tal licença poética e a tomei como efetiva pausa da poesia, um fim para tudo o quanto houvesse de literário na minha história. Era uma permissão para ir embora, um adeus aos versos, à estesia.
Despedi-me, sem pesar, de muito e decidi que, dali por diante, nada passaria de palavras secas. Evitei entrelinhas e não deixei margem para múltiplas interpretações. Os fatos tornaram-se controláveis, previsíveis e, é verdade, tudo parecia cômodo e bem acomodado. Havia posto as coisas em ordem e não pretendia mudá-las de posição até que a despedida parece despropositada e a poesia faz falta.  A ordem cômoda mostra-se desconfortante e a arrumação, de tão perfeita, finda inútil.
Certamente, necessária será uma nova licença, dessa vez, uma licença dada pela própria poesia, uma permissão à reaproximação. Por ora, não sei como proceder. Peço perdão, portanto, se não me reconcilio depressa com ela. Lamento pelas palavras pobres, pois, por minha vontade, mostraria, já de agora, algo que se pudesse chamar literatura.



segunda-feira, novembro 09, 2009

à porta

Tu não és de pedra, sinto os teus sinais de vida e sei do teu coração, da quentura que há em ti. Sei também que quando falas, arrogante, na desimportância de tudo, queres te referir à beleza de tudo. Afirmando, resolvidamente, ser o mesmo tudo, mais que irrelevante, passado, pensas, contra tua vontade, em um eventual futuro. Quando apontas a covardia de um coração fechado, procuras um meio de destrancá-lo. Se mencionas as páginas rasgadas, sei que, qual criança no chão do quarto, insistes em juntá-las, pois, se tal me ocorre, contigo não há de ser diferente.
Não consigo dizer - e não estou a forjar ignorância - quem fechou a porta para quem, na mão de quem estava a maçaneta. Se o fiz, o pedido pode até ter sido teu. Se ato e decisão foram meus, nada tenho a mencionar além de que é este um novo momento.
Digo-lhe, com convicção, que já não necessitamos da troca de hostilidades. Posso deixar a entrada da casa aberta e aguardar. Posso repetir os velhos discursos, relembrar frases e ouvir as gastas canções. Posso ser só nostalgia até que apareças no vão da porta. Inclusive, podes chegar à porta e aportar por aqui, sem pressa.

quinta-feira, novembro 05, 2009

sobre os imperativos

Quando eu te quiser falar, não me peças o silêncio, não me clames por respeito, não me deites nos ouvidos tua moral. Quando eu te quiser gritar, não me peças paciência, não me lembres da decência, não me feches no meu mal. Quando eu te quiser distante, não demores outro instante, afagando estas mãos que já não te querem perto. Não te finjas de tão certo, de alguém que é só meu, não te pintes de ateu, descrente de minhas ameaças. Honra estas tuas calças, já sei bem que tipo és, não te jogues aos meus pés caso eu esteja noutro mundo. Contigo não haverá assunto e ali não irás entrar, mas quando eu te quiser falar, quando eu te quiser ao lado, nada há que reclamar. Não apontes os pecados ou o que se fez de errado, quando eu te quiser ao lado, quando eu te quiser falar, não te prendas ao passado, agarra-te no que será.