quarta-feira, fevereiro 23, 2011

de passagem

música para a leitura








Chegamos na cidade pelas ruas pacatas do bairro da Novidade com suas casinhas simples, de muros baixos. Vimos crianças a brincar, famílias inteiras nas calçadas durante as tardes dominicais e, à noite, os clássicos namoros ao portão com furtivos beijos atrapalhados. Permanecemos ali por dias, quando nos propusemos a seguir. 
Adiante, adentramos o bairro da Amizade, onde experimentamos a sensação de precisarmos um do outro. No parque do bairro, de igual nome, sentamo-nos para observar os transeuntes cheios de cumplicidade e afeto, amigos com tudo o que a amizade oferece. Era-nos um convite. Aceitamos.
A caminho do próximo bairro que visitaríamos - tínhamos em mente chegarmos ao bairro da Aventura -, rumamos pela estrada que estava às margens do Lago da Conquista e o efeito foi instantâneo. Naquele momento, no ímpeto de uma troca de olhares decisiva e decidida, partimos em direção ao bairro do Amor com pressa, sem que precisássemos dizer qualquer coisa.
Era um bairro absolutamente lindo, de muitas cores, embora de patente suavidade. Ali contemplamos a confusão de amadores, própria dos novos amantes, com nosso sorriso, a um só tempo, de compaixão e identificação.
Ruas alegres, cujos nomes eram títulos de canções: Rua Último Romance, Rua Vitrines, Desafinado, Belle de Jour... I Wish You Were Here, Luz e Mistério, Better Together, Eleanor Rigby ou Calle Un Lugar en Tu Almohada, todas organizadas em pequenos distritos, segundo os respectivos intérpretes. Ao entrarmos em cada uma delas, automaticamente se iniciava a canção e, nos cruzamentos e esquinas, tínhamos o silêncio dos apaixonados. Árvores, brisa fresca e cheiro de flores por toda parte, era assim o bairro do Amor.
Por outro lado, havia o grave inconveniente de se tratar de um bairro demasiado confuso, com ruas tortuosas, algumas de uma estreiteza admirável, outras absurdamente largas, praticamente impossibilitando-se a travessia. Cruzavam-se entre si de forma incompreensível, num emaranhado assombroso e desafiante. O perigo nos espreitava e perder-se era quase certo. 
No vislumbre doentio que aquele bairro nos causava, recordo-me da derradeira ocasião em que estivemos juntos para nunca mais, no exato ponto onde se cruzavam a Rua Samba do Grande Amor e a Rua Fotos na Estante. Desde então, foi-me impossível saber seu destino, fato este que, de aparentemente trágico, mostrou-se providencial. Segui em frente até que finalmente encontrei um sobrado à Rua Novo Amor que, arrebatada, aluguei. Radiquei-me no local com a sorte de a janela da frente ter uma incrível vista.
Quanto a você, se de passagem, não hesite em entrar para tomarmos um chá ou simplesmente ouvirmos a canção que vem da rua, pois é verdade que está tudo novo como na música.

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

olhos de strike



Naquele dia, punha em ordem meus armários, papéis, livros, revistas e lixos em geral. Surpreendia-me com os achados como quem descobria monumentos paleozóicos, documentos históricos. 
Eram folhas amareladas, fotos com rostos quase esquecidos, grafias insondáveis, de autores, por pouco, igualmente indecifráveis. O mais doloroso, no entanto, não era a antiguidade de todas aquelas velharias, mas saber que eram minhas. Minhas recordações, minhas pequenas memórias, de um tempo que, dia desses foi ontem e agora se mostrava passado remoto. E porque tudo aquilo se via tão antigo, tão gasto, tão pó, vi que também eu havia me tornado vítima dos anos. Achava-me, transcorrida uma vida de tantas horas, velha ou simplesmente uma sombra decadente do que, um dia, tinha sido.
Na juventude, não podia me considerar a mais bela, embora guardasse no semblante a certeza de uma graça bem elogiada. Da mesma forma, não obstante carecesse de genialidade, jamais me faltou a perspicácia que um à época namorado detectou nos meus olhos, para ele considerados como duas sagazes bolas escuras, inquietas e rígidas. "Olhos de strike", como costumava dizer.
Naquela ocasião, achei brega, piegas, feio, enfim. Hoje, porém, agradar-me-ia ouvi-lo outra vez. Os tais "olhos de strike", que simplesmente derrubam aquilo que esteja adiante, quisera ainda tê-los, pois a própria sequência ininterrupta dos anos se encarregou de apagá-los, retirando-lhes a densidade e a força.
A idade dói, meus anos pesam. Cá estou, idosa e caquética, com o fardo da vida inteira, mas sinceramente realizada em carregá-lo, satisfeita com toda a alegria e toda a tristeza passadas, com tudo que ganhei sabendo que perderia - e, de fato, perdi. Afinal, assim haveria, feliz e irremediavelmente, de ser. 

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

opção dois

- Nesse caso, nós só temos duas opções: ou ela é louca, ou você está mentindo.
- Eu sempre prefiro a segunda opção. 


Então li um trecho de Simone de Beauvoir, porque achei adequado e também por sentir que eu precisava dizer-lhe alguma coisa. Era duro ver a realidade diante dos olhos, sempre tão descarada, ao passo que outros insistem em manter a cegueira à plena luz:

"Lembra-se quando fazíamos troça das mulheres que se deixam sacrificar? Continuo a pensar, apesar de tudo,  que não sou feita da massa com que se constroem as vítimas."

Foi-lhe um tapa na cara, talvez, pois me olhava pálida. Era preciso chocá-la, porém, eu sabia. Sempre soube tantas coisas e tantas coisas se tornavam descobertas, cálidas novidades, azedas e delicadas, que, faceiras, exibiam-se a quem quisesse admirá-las. Ah, sempre soubemos, eu, você e Simone de Beauvoir que só há dois tipos de mulheres: as enganadas que um dia vêem e as enganadas que cegas querem permanecer.