sábado, fevereiro 20, 2010

mais cara, mais rosto

"E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara."
Clarice Lispector em Felicidade Clandestina



De fato, não é que haja uma máscara que esconde teu rosto. A máscara não é um objeto interposto entre tua face e a minha. Não. O teu rosto é a máscara mesma.
Quero, com isso, dizer que não tens uma cara, assim, de carne e osso, não tens. É por isso que não podes dar a cara à tapa, não podes arriscar. É pelo mesmo motivo que não posso chamar-te cara de pau, indignada com os atos teus que desaprovo.
Se não tens cara, que poderia eu esperar? Vergonha na cara? Naturalmente que não. Sem rosto, não terias onde pôr a tal vergonha.
Por mais triste, só possuis este disfarce que te veste a face que não tens. Não posso, assim, dizer que escondes, atrás de todo esse papel machê, uma real identidade. Compadeço-me porque sequer podes fingir ser quem não és.
O carnaval passa e, enquanto todos guardamos fantasias, plumas e confetes para o outro ano, tu permaneces mascarado, alongando para sempre tua folia solitária.
De cá, continuo compenetrada na tua máscara, sentindo por jamais te poder conhecer a fundo. É que, se quem vê cara não vê coração, imagine-se, então, quem nem cara vê.


quarta-feira, fevereiro 17, 2010

aperto















Em uma noite das mais quentes de um verão morno, estava deitada à cama, de olhos cerrados, experimentando as carícias de uma brisa tímida. A casa era um silêncio de sombras longas e as pálpebras pesavam como se houvesse uma venda sobre elas.
Nada em volta: nenhuma companhia, nenhum barulho. O ar seco, noite adentro, invadia-lhe os pulmões, inebriando-a num sentimento sem definição. Não se parecia com o aperto da saudade, que tantas vezes lhe contraiu o peito. Não chegava perto de ser tristeza, pois nada tinha de aperto na alma, aquele aperto apto a extrair lágrimas dos olhos. Não se tratava também de medo, que mais parece um aperto nas entranhas, revirando e arrancando as vísceras. Tampouco era felicidade, aquela que nos estampa um sorriso, dentes à mostra, apertando-nos os olhos, tornando-os pequeninos, perdidos na face.
As cortinas, nesse intervalo, dançavam, no quarto negro, um balé sem holofotes. Subiam e desciam numa sincronia magistral e o vento, agora, cantava uma canção branda, cheia de singeleza.
O sentimento traduzido num aperto sem nome lhe acompanhava a respiração, permanecia no ar com a quietude de quem vela o sono de uma criança ao berço. Tratava-se da magia dos sentimentos anônimos, que retirava o chão, a cama, e fazia todo o corpo levitar na penumbra, suspenso em um aperto que agarrava cada poro, erguia cada célula do corpo até que fosse a luz da alcova acesa.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

as bolachas

- A vida tem sido difícil.
- Sim...
- Ando meio desenganado.
- Também pudera.
- Estou certo que inclusive as crônicas diminuíram de tamanho. Nem os escritores tem mais tempo. E olhe que tempo nunca lhes faltou em outras épocas.
- Sim. E os pacotes de bolachas também.
- Como?
- Diminuíram.
- Tem razão.
- Grande diálogo, ham? Tem algo de moderno, de tempo apertado.
- De pacote de bolachas.

Eu poderia lhe dizer que não pegue esse avião,
que não perca a sessão
de um céu feito cinema,
que não entre nesse esquema
de trocar teu futebol por um empreguinho à toa,
quando a água está tão boa 
e o mar é bem ali.
Poderia lhe pedir
que não corra,
que não morra,
que não deixe de falar,
de sonhar
sem chão,
de cantar no chuveiro,
que não pense não,
nem demais nem tão ligeiro,
que não coma tão depressa,
que não esqueça tua promessa
de ser um ser humano.
Mas Marte, Urano
estão de nós distantes
e tu, porque humano,
tens fome embora cantes.