domingo, novembro 11, 2012

Bacon, Blitz e Chanel

Repara na folha
que o vento carrega.
Ela vai, tão natural.
Olha a folha, olha
então te sossega
Tu és bem assim, bem igual.


Descia as escadas, dobrava à esquerda e seguia até o fim da rua. Alcançava a 15 de Maio, subia a Afonso Reis, num trajeto total de exatos sete minutos. 
Com as pernas que já caminhavam com vontade própria, tamanho o hábito, às 17h fazia o percurso inverso. Em casa, tirava os sapatos, ligava a TV no programa de entrevistas diário, comia qualquer improviso e, às 21h, já era pedra na cama.
Às sextas, o happy hour era com Rita e Ângela, ambas no auge dos trinta e no ponto alto da desilusão. Mas Mônica não.
Para ela, havia três coisas que lhe eram realmente caras: bacon, o disco da Blitz de 1982 e sua bolsa Chanel que adquiriu após um ano e dois meses de economia. No mais, nada.
Não lembrava de ter se apaixonado, exceto pelo professor de Contabilidade Pública, durante a faculdade. Foi amor platônico, naturalmente, que mal chegou a ser descoberto por ela mesma. Divulgada a primeira nota da disciplina no semestre, o amor regrediu ao grau zero, como sua pontuação no exame e, felizmente, a moça voltou à rotina.
Adaptava-se, dizia, enquanto as amigas, entre goles de chope e filés com fritas, sonhavam com um amor um pouco mais consistente que a espuma daquela bebida.
Chorava uma vez ao ano, no máximo, cortando cebola, talvez, nada com muitos sentimentos.
O fato é que havia se adaptado e, se algo saía do lugar, adequava-se mais uma vez. Não importava a insipidez que o mundo ganhava assim. Da mesma maneira, irrelevante se essa sua contínua adaptação a furtava da felicidade que, bem ou mal, também é um desequilíbrio do cotidiano. O bom é que estava segura na sua vida tranquila de produto do meio, nas delícias do comodismo irrefletido.
Toda essa segurança soava como Blitz, tinha gosto de bacon e era bela, belíssima, como sua linda Chanel: um alívio.

terça-feira, outubro 02, 2012

when the snow falls

 The snow falls `round my window
But it can`t chill my heart
Weary Blues - Madeleine Peyroux

 
Estar ali, perante o nada, parecia conferir-lhe algum sentido oculto. O infinito, cuja dimensão seus olhos não eram capazes de captar, contido em todo aquele céu negro, era dotado de uma espécie de efeito anestésico, alienante, bom e essencial.
A noite, ela sabia, era sempre nostálgica, repleta, portanto, de perigos pontiagudos, farpas de doces memórias perfurantes, lindas e doloridas lembranças, estas que causam tão forte dependência química e emocional.
Permanecer era um exercício arriscado, pois qualquer brisa leve poderia ser um caminho para recordar o amor, sonhar com planos irrealizáveis, inevitavelmente frustrantes. Sim, ela sabia. Qualquer movimento em falso seria fatal e olhar ao redor poderia ser tão terrível...
Costumava, então, abrir bem os olhos à lua, que, por ser absolutamente material e completa, era seu paradigma de autossuficiência. Imóvel, sóbria, fria. Contemplando-a, ensaiava um sorriso esperançoso, de pupilo que, desastrada e ingenuamente, quer copiar o mestre, em um caricato ato de credulidade.
A canção, porém, alonga-se: o gelo cai, mas o coração, por teimosia ou vocação, nunca desaquece. É a lei.

sexta-feira, junho 01, 2012

chega de saudade, chega com saudade

A falta de toque, de cheiro, de materialidade traduz o que se entende por saudade. Saudade é mesmo isso, é toda essa ausência, o vazio que me toma o íntimo, o silêncio que, calado, pesa. Saudade é não ser, não estar, são essas reticências sem fim, indefinidas, inquietantes.
Então saudade se torna impaciência, ansiedade, tique-taques de um relógio lento demais, cujas horas se demoram, avançam como caminhassem para trás. Torna-se a saudade dias riscados no calendário, contagens regressivas constantes ou uma respiração nervosa, que, do meio para o fim, não vem. Pára. E, de fato, se a saudade é como a respiração, a respiração é como a saudade, paralisando tudo em volta.
Chega mais um dia e o nó na garganta está ali. Certifico-me de que a ausência é persistente e não menos cruel. Fito os meus dedos, já cansados de contar o tempo e vejo neles nosso elo. Creio, então, que logo mataremos a saudade, com um veneno ou coisa afim que, calmamente, retire-lhe a vida, roubando-lhe o ar. Enfim, serei mais eu, seremos mais nós dois, sem saudade ou só com a lembrança dela, memória de quem já se foi.


sexta-feira, março 16, 2012

por entre os dedos

música para leitura



havia algo de escorregadio 
de ensaboado
de esguio
de leve demasiado
que se lhe escapava entre os dedos.

Já recebera o diagnóstico. Tratava-se de dependência emocional, carência afetiva ou, como dissera a amiga mais próxima, desespero. E não havia motivos para tanto - continuava a amiga - era apenas mais um dos relacionamentos que dava errado, como todos os outros. 
Preocupante, pois o problema não poderia ser o resto inteiro do mundo, mas era ela, era a moça o problema, o grande desastre não era ninguém, outro alguém, era ela. 
Começava, apegava-se, cercava o rapaz de cuidados, construía-lhe uma cerca ao redor, isolava-o do mundo, sufocava-o, via o fim. Chorava e mais uma vez começava, seguia os mesmos trâmites e encontrava a companhia da frustração, sempre da mesma maneira, quando outra vez chorava. Corria riscos, entregava-se, fazia-se transparente, franca, no entanto, algo sempre lhe fugia ao controle como tivesse vida própria, desregulava o conto de fadas e a receita do bolo falhava.
A amiga retrucava que era o cheiro do desespero que ela exalava, era o nome do desespero que houvera escrito na própria testa para quem quisesse ver. 
Revoltada, jurou não mais amar, não se envolver com quem fosse, havia cansado dos romances sempre tão distantes dos filmes. As suas histórias davam trabalho, roubavam-lhe o sono, a concentração, sempre curtas e dolorosas.
A amiga assegurava, insistia que a culpa era do desespero tão evidente, repetindo sua opinião em tom de repreensão...
Eis que surge um outro rapaz, tão diferente dos outros - curiosamente sempre era esse o primeiro pensamento da moça -, tão diferente! Agora há de dar certo, claro. Evidente que sim! "Como pude pensar em desistir do amor?".
A amiga não tira da cabeça que o desespero ainda é patente e se impressiona que a moça ainda ouse tentar. Acha que a verdadeira virtude não é ser corajosa mas tonta o suficiente e confirma a veracidade do diagnóstico: a dependência emocional deve mesmo ter algo de vício.

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Entre o Código Penal e a natureza





Um texto para os iniciados nas letras jurídicas

Quando ela me veio visitar, envolviam-me a emoção e paixão do artigo 28 do Código Penal, aquelas que, pela letra fria da lei, não excluem a culpabilidade.
Não havia saída ante o fato de que todos somos criminosos por amar, culpáveis por nos deixarmos possuir pela emoção. Infratores todos somos, incluso o pequenino animal visitante. A joaninha foi partícipe, induzindo-me à escrita, convencendo-me a incorrer no grande crime que é a poesia. A miúda me fez errar, cair na reincidência de voltar a escrever.
É verdade que a emoção e paixão não excluem a culpabilidade, pois, de mim, era exigível conduta diversa, era imperioso que houvesse resistido à tentação do erro, ao encanto das letras. Não resisti, porém, e nada me exime da responsabilidade penal.
Do mito da ressocialização sou a maior prova. Cumprida a primeira pena, retorno à delinquência, volvo ao crime sem remorsos, por não conseguir me desvencilhar do encanto que há em saber-me avessa às expectativas sociais. Criminosa até que provem ao contrário - oposta, pois, a tudo, mesmo à presunção de inocência -, a palavra é meu crime, minha pena, meu algoz.