Talvez por coincidência ou, quem sabe, por vontade do destino, apenas tardiamente me foi possível perceber a data que o calendário marcava. Não dei por conta, de imediato, do teu aviso.
Ontem, equinócio de primavera, a lua, anunciando a estação que dava as caras, fazia-se formosa no céu. Era vinte e três de setembro, ah, perdoe-me, era início da primavera e custei a notar.
É que a vida anda agitada e pensamentos tolos ocupam todo o espaço, pouco resta para as boas lembranças. Os últimos acontecimentos afugentam a um canto estreito da mente os fatos vividos naquele vinte e três do passado, de modo que chega esta data tão mansa, sem se fazer anunciar por trombetas, que quase, por muitíssimo pouco, passou-se esquecida.
Agora, puxo o fio da memória. Como cordel com seus folhetos pendurados, chegam-me as lembranças e sinto, descontroladamente, vontade de sorrir.
Lembro-me do desconcerto daquele dia vinte e três do mês de setembro. Recordo-me de nossa timidez mútua e dos gestos descompassados, do tremor nas mãos e rubor das faces. Ocorre-me o medo que transparecíamos a cada movimento receoso, à espera de contrapartida, a cada riso nervoso. Como esquecer nossa insegurança e incerteza recíprocas? Guardávamos em nós a confusão de sentir, de uma só vez, a dúvida sobre o querer do outro e a convicção do querer próprio.
E o filme corria solto na grande tela, longe dos nossos olhares, mais distante ainda dos nossos pensamentos. De que falaria ele? Não nos importamos em descobrir, pois pairava outra dúvida mais inquietante. A minha, por certo, eras tu.
Já me tinham ensinado as aulas de geografia que, em ocasiões como aquele vinte e três, os dois hemisférios do planeta recebiam igual calor. De fato, se eras uma banda do mundo, eu era a outra e o calor que recebíamos era absolutamente idêntico, vindo de uma só fonte.
Foi assim que naquele equinócio, fantasticamente, senti toda a primavera num mesmo dia. Diante dos fatos, eu não poderia jamais cogitar outra estação mais colorida e perfumada.
Religiosamente, comemorei a data ao longo dos anos, como um feriado, uma festa de santo. Era o dia vinte e três sempre uma ocasião de recordar, ou seja, colocar os livretos de cordel na corda da memória, numa espécie de literalidade da recordação, e arrastá-los pelo barbante da lembrança.
Certos anos a memória me trazia alegria, outros anos tristeza. Mas sempre estavas presente em cada uma das (co)memorações - e a memória era mesmo conjunta. Bem ou mal, estavas ali para trazer maiores sorrisos ou mais lágrimas causar.
Noutras épocas mais recentes, a memória permanecia, mas o ritual não se repetia. Tal qual beata que abandona a fé, larguei o culto, descuidando do festejo.
Este ano, relapsa como jamais havia sido, faltou-me pouco para esquecer a data por completo. Tu, porém, não permitiste.
Bons ventos primaveris te trazem. Tu vens no vento, nas flores. Tu vens na data, caminhando na corda-bamba da recordação, no vinte e três de setembro, perpetuando-o, tornando-o dia de não se esquecer.