- Ora, vamos. Isso não é jeito de falar. Não fica bem tanta grosseria, Ana. Sente-se, sim? Conversaremos como adultos. Acalme-se. Viu as fotos que revelei? Ficaram ótimas as fotos da viagem. Penso que logo faremos outra dessas e...
- Você cheira à morte.
- Ana...
- Morte antiga e já em decomposição avançada, cheia de baratas sarcófagas. Preciso vomitar.
Diálogos incontidos são feitos, em regra, de verdade nua e mal educada. A verdade despida, numa nudez plena, é devassa, ameaçadora à moral e bons costumes. A sociedade a nega.
Por temer a rejeição, fecho a boca ao mastigar e nunca bato à porta da vizinha para mostrar-lhe o juízo que, de fato, faço dela e dizer-lhe que deveria pagar o condomínio. Vivo no co-domínio das classes dominantes que ditam as regras de etiqueta. Vivo no auto-domínio, de pessoa dominada. Daí meu mastigar de boca fechada.
Tivemos uma história de contenção, gentileza, elogios, bom trato. Uma história de "bom-dias", de "você está tão bem hoje" e "durma bem". Urbanidade demais e sinceridade de menos foi nosso erro, termos vivido imersos num mundo de sorrisos corteses, batidas pedindo permissão para entrar e "com licenças" em demasia. Foi a maior falta que cometemos: sermos mais dois no mundo, iguais, em tudo, a todos os educados.
Não sabíamos, mas a educação luta contra nós e não a nosso favor. Estivéssemos eu e você nus, a verdade nua, os fatos teriam sido crus. Houvéssemos tirado a roupa a tempo, entrado nas vidas um do outro sem pedir gentilmente e dito as frases sem escolher criteriosamente as palavras, não seria hoje o cheiro acre, o sabor azedo, o incômodo e assombro póstumos. Não seria o fim triste de uma história comida por vermes.
Falemos sério. Afastemos, pelo menos por ora, a educação cotidiana. A história está podre sim e você, já não preciso nem mesmo falar, cheira à morte.
Aos "correligionários" que entre livros e amigos estão.
Aos "correligionários" que entre livros e amigos estão.